O jornal britânico quer faturar com o passado sombrio de seu fundador. Com isso, só está fazendo publicidade.
Por André Marsiglia Santos (foto)
Só quem não entende patavina de jornalismo é capaz de acreditar que o grande perigo da modernidade são as fake news. O perigo é a publicidade disfarçada de jornalismo.
O jornal britânico The Guardian apresentou na semana passada a seu público o “Cotton Project”, ou “Projeto Algodão”, por meio do qual expôs a ligação de seu fundador, Edward Taylor, com o tráfico de escravizados para o cultivo de algodão nas Américas. Embora o fato tenha se passado em 1821, houve por parte do jornal um pedido de desculpas e o anúncio de que investirá algo em torno de 60 milhões de reais em “projetos de reparação” e “políticas editoriais afirmativas”.
Caro leitor, sabe o que isto significa? Que o The Guardian quer lucrar com o passado sombrio de seu fundador. Como se diz por aí, quer fazer do limão uma limonada: atinge-se a simpatia popular reposicionando o passado de uma forma positiva. Até aí, problema nenhum. Em tempos de politicamente correto, as empresas fazem isso mesmo para reforçar sua credibilidade. Obviamente, nem sempre são sinceros os posicionamentos, mas qual publicidade é sincera, não é mesmo?
O revisionismo histórico, tal como promovido pelo The Guardian, não passa de uma peça da engrenagem publicitária. Por intermédio do conteúdo político, de cunho histórico, choca-se o consumidor do jornal com o apelo do passado nefasto para, em seguida, engajar o mesmo consumidor com a postura politicamente correta do presente, gerando simpatia à marca. Embora o método não explicite a intenção publicitária, pode ser aceitável à maior parte das empresas, mas não a um veículo de comunicação, que ancora sua essência no tratamento jornalístico dos fatos.
É óbvio que o jornalismo não é neutro, mas não é sua neutralidade que o diferencia dos textos publicitários, por exemplo. Os fatos não são um dado da natureza, existem a partir da interpretação e vivem por meio da interação humana, portanto, em toda escrita, inclusive a jornalística, sempre será encontrado o posicionamento do autor.
Vidal Serrano tem uma hipótese que calha bem a essa discussão. Entende que a diferença entre textos jornalísticos e publicitários não está na neutralidade, mas na espontaneidade da escolha, ou seja, na intenção de cada autor. Quando uma escolha editorial é espontânea, mesmo que o texto carregue o posicionamento político do autor, é jornalismo; quando uma escolha é previamente feita para convencer o leitor de algo, é publicidade.
O revisionismo histórico do The Guardian não é uma leitura espontânea do passado, mas política e, certamente, cravejada de expectativas de retorno positivo à reputação de sua marca no mercado. Ou seja, é publicidade, não jornalismo. E ao anunciar seu conteúdo como jornalismo, age de forma enganosa com o leitor. O próprio jornal denuncia sua intenção ao dizer que seu projeto promoverá “políticas editoriais afirmativas”. Ora, isso não existe: ou políticas ou editoriais. A expressão não faz sentido, é uma contradição, uma armadilha.
Termino meu texto como o comecei. Fake news não são o maior perigo da modernidade, são espécies do gênero publicidade tentando se passar por conteúdo jornalístico, mas são de quinta categoria. Há, no entanto, os de primeira categoria: aplaudidos, premiados e que gozam da simpatia do público e dos tribunais.
Revista Crusoé