Com a entrega do Orçamento ao Centrão, a régua da ética, da moralidade e da responsabilidade no uso de recursos públicos baixou muito
Entra para os anais da história política brasileira a desfaçatez com que os grupos ligados aos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) decidiram impedir que seja conhecido de todos os patronos e os beneficiários de R$ 30,8 bilhões (até agora) em recursos públicos. A resolução aprovada na segunda-feira pelas duas Casas atende mal e parcialmente a determinação do Supremo Tribunal Federal de transparência total do processo de distribuição das emendas do relator. Lira e Pacheco dizem que há “impossibilidade fática” de atender a exigência da ministra Rosa Weber, e uma suposta tragédia em curso, igualmente fática, de centenas de municípios terem obras paralisadas sem esses recursos.
Sob o comando do Centrão, e no Senado, de um político novo, cotado para candidato à Presidência pela terceira via, mas que se sente plenamente à vontade com orçamentos secretos, o Congresso se apropriou do orçamento e tenta esconder uso de verbas públicas para fins privados - eleitorais ou pessoais. Com o uso da lei de acesso à informação, o “Estado de S. Paulo” levantou dezenas de nomes de patrocinadores de emendas, de receptores de verbas bilionárias e de pequena parcela de seu uso - compras superfaturadas de tratores, por exemplo.
Não existe chance de políticos verem passar bilhões de reais passeando soltos por aí sem saberem de onde vêm e para onde vão. Mas o distinto público não pode ter esse conhecimento e, o que é mais grave agora, nem o Supremo Tribunal Federal. A impossibilidade, que nada tem de “fática”, mascara objetivos coronelísticos da distribuição de recursos pelos chefes do Legislativo e tenta apagar as pistas de um acordo, selado com verbas, para salvar o presidente Jair Bolsonaro de um impeachment e garantir sua disputa à reeleição. Apenas uma fresta aberta nos repasses secretos revelou, por exemplo, que o pai e um primo de Lira foram agraciados por essas emendas.
A farsa das emendas do relator foi punida no escândalo dos anões do Orçamento e a resolução do Congresso de 2006 restringiu essas emendas à “correção de erros e omissões”, ou seja, verbas marginais. Mas como nada existe por lá sem uma finalidade, a mesma resolução deixou em aberto que o relator atendesse “às especificações preliminares de pareceres parlamentares”, ou seja indicações da Comissão Mista de Orçamento. Erros e omissões então se transformaram em 28 itens do orçamento em 2020 e 22 no de 2021 (Poder 360).
O sigilo tornou-se a essência da RP9 turbinada. Afora dificultar o rastreio do dinheiro, o segredo encobre o fato de que alguns deputados e senadores são mais iguais que outros ou menos iguais que os aliados do Planalto. Não existe razão para isso nos regulamentos do Congresso. As legendas do Centrão e aliados formam a maioria do Congresso e portanto já tem o direito de obter maior volume de emendas que a oposição. As emendas individuais e de bancadas estaduais atendem a essa realidade política. A rigor a RP9 deveria ser extinta.
O Congresso não pensa assim, tanto que a Câmara aprovou uma resolução enviesada mantendo as RP9 por 268 favoráveis e 31 contrários, e o Senado também, por 34 a 32. Para dificultar a identificação da origem dos pedidos, que muitas vezes denuncia seus fins, as emendas do relator agora atenderão a solicitações vindas não só de parlamentares, mas de “agentes públicos ou da sociedade civil”, um estímulo à criação de muitos “laranjais” nos currais eleitorais do Brasil, como disse o deputado Marcel van Hattem (Novo-RS).
Outra esperteza da resolução é aparentemente atender à determinação de fixação de um teto para as emendas do relator determinando um mínimo para elas - ambos inexistiam. O Congresso estabelece que as RP9 serão no máximo a soma das verbas destinadas a emendas individuais e de bancada (que corresponde a 1,1% das despesas primárias), que são equitativas, enquanto as do relator não. Para o Orçamento de 2022 serão R$ 16,3 bilhões. Além disso, a resolução não torna obrigatória nem a identificação de quem solicitou os gastos nem a distribuição igualitária dos recursos. E ficam a critério do relator e da elite dos grupos aliados do Planalto.
Com a entrega do Orçamento ao Centrão, a régua da ética, da moralidade e da responsabilidade no uso de recursos públicos baixou muito. A exigência do STF ecoa a de um filósofo libertino francês do século XVIII: “Um pouco mais de esforço se quereis ser republicanos”.
Valor Econômico