Missão é recuperar a confiança dos agentes econômicos
Por Fernando Exman (foto)
Deve-se recorrer ao “best seller” internacional “Sapiens - Uma Breve História da Humanidade” para obter uma visão interessante dos momentos vividos nos últimos dias pela equipe econômica. Mais especificamente, folhear o capítulo 16, intitulado “O credo capitalista”.
Vale a pena. É dica de uma autoridade que acompanhou de perto a crise entre a cúpula da pasta da Economia e a ala política do governo, a qual culminou em mais uma debandada de técnicos subordinados ao ministro Paulo Guedes.
As baixas foram lamentadas dentro do ministério. O ambiente interno vinha melhorando e havia a expectativa de que o trabalho desenvolvido, além de sinalizar o compromisso com a responsabilidade fiscal, ajudaria a recolocar o país na rota do crescimento. Confirmado esse cenário, naturalmente o presidente da República e seus aliados seriam beneficiados na campanha eleitoral de 2022.
Achava-se que o governo, com ajuda do Congresso, já havia destinado um volume considerável de dinheiro para o combate à pandemia e, também, para o enfrentamento dos efeitos da crise. Reconhecia-se, no entanto, que o país passa por um momento difícil e um reforço nas políticas sociais precisava ser discutido.
De pronto, encontrou-se margem para ampliar o valor mensal recebido por milhões de famílias para R$ 300, mas a quantia não foi considerada suficiente por Bolsonaro e pelo seu entorno político. Era preciso abrir espaço para a concessão de benefícios de R$ 400 mensais, o que acabou provocando a recente turbulência.
Diante da pressão, a equipe econômica não conseguiu construir a tempo um discurso claro e transparente de que a iniciativa não deveria ser vista como um “furo” no teto de gastos. A elevação de emendas parlamentares ao Orçamento seria inevitável, é verdade, mas havia disposição de não abrir a porteira para qualquer investimento em infraestrutura, por exemplo. Sob essa ótica, tratava-se de uma concessão pontual a ser compensada pela arrecadação e pelo avanço da agenda de reformas no Legislativo.
A mensagem que o governo pretendia passar era que ocorreria, isso sim, apenas um “ajuste” no teto. E ele se daria por meio da mudança de critérios de sua aferição. Ou seja, em vez de corrigi-lo pela variação do IPCA de junho a julho, a ideia era considerar a inflação do ano-calendário: uma adaptação metodológica que se fazia necessária por causa do aumento da fome no país.
Contudo, não se obteve sucesso na empreitada. Até hoje integrantes da equipe econômica tentam explicá-la e assegurar que a responsabilidade fiscal não ficará apenas no discurso. Há, portanto, um déficit de confiança a ser enfrentado. E é exatamente este o aspecto da importância da confiança sublinhado por Yuval Noah Harari naquele trecho de “Sapiens”.
Ao tratar do “credo capitalista” no capítulo 16, ele destaca que é preciso ter em mente uma só palavra para entender a história econômica moderna: crescimento. Isso porque durante a maior parte da história a economia permaneceu mais ou menos do mesmo tamanho, e o que mudou essa característica foi a capacidade do ser humano de criar engenharias financeiras que proporcionam a alavancagem da economia. “É um tributo às capacidades incríveis da imaginação humana”, disse, acrescentando que o crédito é o que permite a construção do presente à custa do futuro. Em outras palavras, por meio do pressuposto de que os recursos futuros de determinada pessoa física, empresa ou sociedade serão mais abundantes do que os recursos presentes. “O que permite que os bancos - e toda a economia - sobrevivam e floresçam é nossa confiança no futuro. Essa confiança é a única garantia para a maior parte do dinheiro do mundo.”
No “credo capitalista”, diz o autor, o mais sagrado mandamento é que os lucros da produção sejam reinvestidos para o aumento da própria produção. Isso pode - e deve - ser feito tanto pelas pessoas quanto pelos governos. Estes o fazem quando, por exemplo, decidem direcionar recursos para a redução de gargalos de infraestrutura ou educação.
Em geral, a ciência é outro destino comum dessas verbas. Não no Brasil. O país teima em fugir à regra, talvez porque quem tem a chave do cofre não acredita que o orçamento cortado do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação possa ter impacto direto no crescimento econômico.
Ao tratar da doutrina do livre mercado, a mais comum e influente variante do credo capitalista, Harari aponta que seus defensores condenam aventuras militares no exterior com tanto fervor quanto criticam os programas nacionais de bem-estar social. “Eles oferecem aos governos o mesmo conselho que os mestres zen oferecem aos iniciantes: simplesmente não faça nada”, anota o autor, frisando a importância de não se esquecer da interação entre capital e política.
“Capitalistas convictos costumam alegar que o capital deveria ter a liberdade de influenciar a política, mas a política não deveria ter a liberdade de influenciar o capital. Alegam que quando os governos interferem nos mercados, interesses políticos ocasionam com que façam investimentos pouco sensatos, que por sua vez resultam num crescimento mais lento”, diz Harari, concluindo ainda que a crença na forma extrema do livre mercado deve ser considerada ingênua. “Simplesmente não existe um mercado completamente isento de interesses políticos. O recurso econômico mais importante é a confiança no futuro, e esse recurso é constantemente ameaçado por ladrões e charlatães.”
Leitura oportuna. Facilita a compreensão de um dos lados da história. Leva à conclusão que equipe econômica e políticos podem até ter firmado uma trégua passageira, mas a disputa pelo Orçamento e o controle da máquina está longe de um fim. As cadeiras vagas na Economia foram preenchidas por pessoas experientes, preparadas e bem vistas em outras repartições da capital, mas será árdua a missão do governo de recuperar a confiança dos agentes econômicos.
Valor Econômico