Silvio Navarro
Revista Oeste
Sem o picadeiro transmitido ao vivo pela TV Senado, um grupo de cinco deputados estaduais da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte e seus suplentes resolveu fazer o serviço direito. Em agosto, a Casa aprovou uma CPI para investigar 12 contratos que a governadora Fátima Bezerra (PT) firmou durante a crise sanitária. Já nas primeiras reuniões, tinham um nome, uma cifra e um misterioso “Consórcio Nordeste” a serem investigados.
O homem da caneta do tal consórcio era o petista Carlos Eduardo Gabas, que adquiriu 300 respiradores que nunca existiram ao custo de quase R$ 50 milhões.
PETISTA FAMOSO – Carlos Gabas é um nome que apareceu dezenas de vezes em pedidos de convocação na CPI do Senado, mas foi protegido pelos xerifes da Covid.
Gabas é um político da cidade de Araçatuba, no noroeste paulista, servidor de carreira do INSS. É um daqueles petistas orgânicos, ligados à máquina partidária. Muito amigo de figuras como o ex-presidente da sigla Ricardo Berzoini, do Sindicato dos Bancários, e do prefeito de Araraquara, Edinho Silva.
Foi Berzoini quem o levou para o ministério de Lula quando comandou a pasta da Previdência Social, cargo que o próprio Gabas herdaria anos depois na gestão Dilma Rousseff. Quando o ministério precisou ser leiloado em troca de guarida política no Congresso e ficou com o PMDB, Dilma instalou Gabas na Secretaria de Aviação Civil — ainda que não houvesse qualquer registro prévio de sua experiência na área.
MOTOQUEIRO DE DILMA – Àquela altura, Gabas havia se tornado amigo pessoal da então presidente Dilma. Ficou famoso quando os fotógrafos que faziam plantão no Palácio da Alvorada descobriram que era ele quem a levava para passear na garupa das motos Harley Davidson aos fins de semana.
Assim como o segundo governo Dilma, o destino das motocicletas tampouco terminou bem. Acabaram apreendidas pela Polícia Federal durante a Operação Custo Brasil, da Lava Jato. Gabas foi investigado por participar de um propinoduto que abastecia o caixa do PT por meio de assalto aos fundos de pensão e à folha de empréstimos consignados de funcionários públicos.
Foi levado pelos policiais em condução coercitiva para prestar depoimento, mas ficou calado. Outros colegas, como o ex-ministro Paulo Bernardo, marido da presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, foram presos.
CONSÓRCIO NORDESTE – Com a saída de Dilma e do PT do governo, o nome de Gabas andava esquecido. Até que um escândalo (devidamente acobertado pela imprensa nacional) veio à tona na Bahia no ápice da pandemia.
Entrou em cena o Consórcio Nordeste, criado pelos nove Estados da Região e chefiado por outro amigo de Gabas, o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Gabas é o executivo do consórcio. É ele quem carimba as negociatas.
O consórcio intermediou a compra de 300 respiradores da empresa Hempcare Pharma, uma importadora de produtos derivados de maconha dos Estados Unidos. Um dos escritórios da empresa fica na cidade de Araraquara, no interior paulista. O contrato assinado foi de R$ 48,7 milhões.
CASO DE POLÍCIA – O Ministério Público e a Polícia Civil da Bahia farejaram a pilantragem. Em síntese, a Hempcare atuava como lobista da compra de respiradores de uma empresa chinesa, que tampouco era do ramo e usava documentos falsos.
A dona da Hempcare, Cristiana Prestes Taddeo, foi presa e teve os bens bloqueados. Só que o dinheiro público sumiu. Foi aí que Cristiana Taddeo resolveu falar. Disse que pelo menos R$ 12 milhões foram pagos em propina para intermediadores dos aparelhos fantasmas.
O restante acabou pulverizado em subcontratos num novelo que ninguém conseguiu desembaraçar até agora. As investigações correm em segredo de Justiça. O que se sabe é que, já com a corda no pescoço, Cristiana pediu socorro a outra fabricante de aparelhos, desta vez nacional e curiosamente também de Araraquara: a Biogeoenergy, que levou R$ 24 milhões.
CADÊ OS RESPIRADORES? – Como a trama foi revelada e entrou no radar das autoridades, inclusive de Brasília, o proprietário da Biogeoenergy, Paulo de Tarso, deu a seguinte explicação: “A empresa tem margem de lucro. Não fico com o dinheiro parado. Não tenho que devolver dinheiro para o Consórcio Nordeste, tenho que entregar os respiradores. Prometi entregar para o governo do Estado, que se recusou a receber”.
Em outras palavras: ele disse que usou o dinheiro, supostamente para começar a fabricar os respiradores. Mas, como o contrato virou alvo de investigação e o governo da Bahia não quis mais os respiradores, ficou tudo por isso mesmo. O caso segue sendo investigado pela polícia baiana.
O secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Telles Barbosa, confirmou a fraude durante a operação policial. “Não encontramos nenhum respirador pronto, por mais que a empresa alegasse a intenção de entregar modelos nacionais e não os chineses.
IRMÃO DE ALMA – Araraquara é uma cidade paulista de porte médio, às margens da Rodovia Washington Luís. O município tem a 40ª economia do Estado. Foi de lá que o país acompanhou algumas das manchetes mais absurdas na pandemia, como o longo e rigoroso confinamento obrigatório da população, com a cena de uma mulher detida com truculência pela Guarda Civil Municipal porque estava sentada numa praça.
Mas não foi só. O prefeito Edinho Silva, também ex-ministro de Dilma e ex-tesoureiro de campanhas do PT, foi citado na delação da dona da Hempcare. Segundo Cristiana Taddeo, Carlos Gabas a procurou porque Edinho precisava de 30 respiradores, mas não tinha como comprá-los.
O amigo de Araraquara era chamado por Gabas de seu “irmão de alma”, conforme a CPI do Rio Grande do Norte esmiúça. Cristiana disse que entendeu o recado como um pedido para que os aparelhos aparecessem como doação — algo em torno de R$ 1,5 milhão, valor que mais tarde seria ajustado nas planilhas do Consórcio Nordeste.
DOAÇÃO INVENTADA – A prefeitura de Araraquara admitiu em documento oficial que receberia os ventiladores hospitalares como doação do consórcio. O prefeito Edinho Silva também foi convocado para prestar depoimento à CPI, que conseguiu a quebra dos sigilos telefônico, bancário e fiscal de Gabas, e agora aguarda os documentos.
“Carlos Gabas é pago com dinheiro do povo nordestino para defender os interesses da Região, não os de Araraquara”, afirma Kelps Lima. “Havia uma cláusula de seguro no contrato para que os Estados recebessem a indenização se os respiradores não fossem entregues. Ela foi retirada e os Estados ficaram no prejuízo. O consórcio virou uma ferramenta para desvio de dinheiro público.”
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Importante matéria enviada por Mário Assis Causanilhas, mostrando que existe corrupção no combate à pandemia que não é noticiada pela grande imprensa. Na CPI de Brasília, o senador cearense Eduardo Girão (Podemos) tentou apurar o que aconteceu no Nordeste, mas não foi ouvido. Por isso, a Assembleia do Rio Grande do Norte formou uma CPI que está conseguindo resultados verdadeiramente concretos no combate à corrupção. Mas quem se interessa? (C.N.)