Relatório final da comissão apresentou um retrato muito bem delineado do que foi a tenebrosa condução do País nestes tempos sofridos
Como era esperado, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid aprovou o relatório final do senador Renan Calheiros (MDBAL) por 7 votos a 4. Entre outras medidas, a CPI da Covid recomendou o indiciamento de 78 pessoas que, no entendimento da maioria dos membros da comissão do Senado, teriam cometido crimes que contribuíram decisivamente para transformar a emergência sanitária em uma tragédia sem precedentes na história do País – a começar pelo presidente Jair Bolsonaro. Ao final da última sessão da comissão, realizada no dia 26 passado, o Brasil havia ultrapassado a marca de 606 mil mortes em decorrência do coronavírus.
A aprovação do relatório de mais de 1.200 páginas é o epílogo de uma CPI cujo objetivo inicial era organizar as profusas evidências da inépcia de Bolsonaro e de outras autoridades para enfrentar a pandemia de covid-19. Ao final de seis meses de trabalho, a CPI cumpriu o seu papel ao demonstrar que, de fato, a irresponsabilidade de Bolsonaro ao lidar com a crise e seu patológico desdém pelas aflições de seus governados, por si sós, foram suficientemente graves por infligir à população um sofrimento muito além do que seria esperado no contexto de uma pandemia. Contudo, a comissão de inquérito foi além de suas pretensões originais e apurou fatos que, até sua instalação, eram desconhecidos do grande público.
Graças às investigações da CPI da Covid, por exemplo, tomou-se conhecimento das tramoias envolvendo servidores do Ministério da Saúde, agentes políticos e lobistas para aquisição das vacinas Astrazeneca/oxford e Covaxin por intermédio de empresas de fachada. É seguro afirmar que as negociatas – urdidas para enriquecer uns poucos sem qualquer garantia de que as vacinas, afinal, chegariam aos braços dos brasileiros – só não foram concretizadas pela ação incisiva da CPI da Covid.
A comissão de inquérito também lançou luz sobre a perigosa projeção que o chamado “gabinete paralelo” adquiriu no curso da pandemia. A pretexto de “assessorar” o presidente da República, o grupo formado por políticos, médicos e empresários sem cargo oficial no governo, como apurou a CPI, serviu apenas para passar um verniz de cientificismo fajuto nas mandingas que Bolsonaro receitou à população com o objetivo de falsear a gravidade da crise sanitária e estimular a volta ao trabalho e a retomada da atividade econômica. Agindo assim, o presidente sobrepôs seus interesses particulares à saúde e à vida dos brasileiros.
As consequências jurídicas da CPI da Covid dependem agora do tratamento que será dado ao relatório pela Procuradoria-geral da República e pelo Ministério Público dos Estados, para os casos que envolvem o indiciamento ou denúncia de pessoas sem foro especial por prerrogativa de função. Que houve crimes, não resta dúvida. Milhões de brasileiros os testemunharam. O País viu – e a CPI da Covid documentou – o atraso deliberado do governo federal para adotar medidas que poderiam ter salvado muitas vidas, como a aquisição das vacinas e o estímulo ao uso de máscara e ao distanciamento social. Entretanto, à CPI da Covid, como a qualquer outra, não cabe se ocupar dos desdobramentos jurídico-penais de seus achados. Naquilo que a concerne, ou seja, a investigação eminentemente política dos fatos que ensejaram sua instalação, a CPI da Covid foi muito bem-sucedida.
O relatório final da CPI da Covid é um monumento político erigido pelo diligente trabalho de seus membros. Em que pesem alguns tropeços dos senadores ao longo do caminho, como oitivas desnecessárias, arroubos de vaidade ou recomendações estapafúrdias, como o banimento de Bolsonaro das redes sociais, os parlamentares legaram ao Brasil um documento histórico. No futuro, a leitura das 1.288 páginas do relatório dará ao observador desapaixonado um retrato muito bem delineado do que foi a tenebrosa condução do País por Bolsonaro nestes tempos sofridos.
Agora está definitivamente registrado, com a força de um documento do Senado, que, durante um dos momentos mais dramáticos de sua história, o Brasil foi governado por um presidente não só incapaz, como nocivo. A despeito disso, o País começa a superar a pandemia – mas levará mais tempo para superar Bolsonaro.
O Estado de São Paulo