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terça-feira, dezembro 25, 2007

Cappio e o governo: o que está em jogo?

Leonardo Boff Teólogo
Aliberação das obras de transposição das águas do Rio São Francisco pelo STF e a suspensão do jejum do Bispo dom Luiz Flávio Cappio aparentemente produziram calmaria na discussão acerca deste megaprojeto. Mas ela seguramente continuará. O jejum e as orações do bispo não foram totalmente em vão. Dos oito pontos apresentados ao Planalto pelo bispo e seu grupo, seis foram acolhidos, o que facilitou sua tomada de decisão.
Estimo que a atriz Letícia Sabatella, que sempre apoiou a causa do bispo indo ao local do jejum, interpretou o sentimento de muitos, em sua resposta à carta aberta ao deputado Ciro Gomes, publicada em O Globo do dia 21 de dezembro: "no dia 19 de dezembro de 2007, o que presenciei na Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi a insensibilidade dos Poder Judiciário, a instransigência do Poder Executivo e a omissão do Congresso".
Há um transfundo nesta questão que ficou ocultado no debate e que deve ser explicitado. Ninguém é contra levar água aos sedentos do Semi-Árido, muito menos o bispo que, livremente, há 30 anos optou viver entre os mais pobres dos pobres, ribeirinhos, quilombolas, indígenas e camponeses. Ele conhece como poucos os problemas do Semi-Árido e as alternativas de convivência com ele, maduradas pelos movimentos sociais da bacia do rio e apoiadas pelos estudos de notáveis pesquisadores da área. O que ele questiona é o modo como isso vem sendo conduzido. Por detrás de tudo estão duas visões de mundo e de política que se confrontam.
O governo busca o grande, um crescimento que atende primeiramente os interesses de grupos do agronegócio e das indústrias e em seguida as necessidades do povo sofredor, o que configura falta de eqüidade. Os dados falam por si: 70% da água devem ser destinados a projetos de irrigação, 26% para abastecimento urbano e 4% para populações rurais do Semi-Árido. Esta posição é chamada de modernização conservadora, teórica e praticamente superada.
O bispo dom Capppio encarna o pequeno, com uma postura ética que visa a dar centralidade ao social especialmente àquelas populações que sempre foram preteridas pelas políticas públicas. Apoia os projetos que sejam amplamente inclusivos e que preservem o patrimônio social, cultural e ecológico da bacia do Rio São Francisco.
Esses projetos existem. A Agência Nacional de Águas (ANA), no seu Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água mostrou que o projeto do governo custaria R$ 6,6 bilhões, atenderia apenas a quatro Estados e beneficiaria 12 milhões de pessoas de 391 municípios. Enquanto o projeto alternativo da ANA custaria R$ 3,3 bilhões, atingiria nove Estados e beneficiaria 34 milhões de pessoas de 1.356 municípios. Existe ainda o projeto da Articulação do Semi-Árido (ASA), que prevê a construção de 1 milhão de cisternas, sendo que 220 mil já foram construídas com o apoio de 800 entidades e também do governo, que a partir de setembro retirou sua contribuição.
Por que o governo não levou à discussão estes projetos alternativos? Eles são muito mais baratos e mais includentes. Essa desconsideração levou o bispo ao jejum de protesto. Suspeitamos, pois esta é a lógica de nosso Estado, historicamente refém dos interesses de poucos, que subjacentes estejam volumosos capitais, grandes empreiteiras e aqueles industriais ligados ao comércio de exportação que teriam vergado o governo para o seu lado.
Por isso, soa demagógica e no fundo falsa a alternativa colocada publicamente pelo presidente: entre o bispo e os 12 milhões de nordestinos sedentos, eu, presidente, fico do lado dos 12 milhões. A alternativa é outra: entre o agronegócio e os 34 milhões de sedentos que podem ser atendidos, o bispo fica do lado dos 34 milhões.
Esta é a questão de fundo que mereceria ampla discussão pública, profunda discussão no parlamento e eventualmente um plebiscito, por envolver vários Estados e o grande símbolo nacional que é o Velho Chico. Os projetos devem servir às pessoas, e não as pessoas aos projetos.
Fonte: JB Online

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