Por: Ricardo A Setti
Com as férias de dez dias do presidente Lula em praia privativa do Exército no Guarujá, a 90 quilômetros de São Paulo, o país está sendo governado desde a sexta-feira passada, dia 5, pelo vice José Alencar. Até aí, nada de novo: Alencar foi eleito e reeleito para isso mesmo, e já substituiu o presidente diversas vezes. A novidade é que, pela primeira vez que se saiba na História da República, o presidente em exercício é um homem em luta contra o câncer.
Na antevéspera mesma da posse, Alencar, que sofreu no dia 14 de novembro passado em Nova York uma segunda cirurgia em quatro meses para a extração de tumor maligno da região abdominal, se submeteu a uma sessão de quimioterapia como complementação do mais recente tratamento cirúrgico, executado por uma equipe liderada pelo doutor Murran Brennan, do Memorial Sloan-Kettering Center. A segunda cirurgia revelou-se necessária porque uma primeira, ocorrida no dia 18 de julho, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, não evitou a recidiva do câncer.
No dia 3 de dezembro passado, o Jornal do Brasil revelou, com exclusividade, que durante a primeira cirurgia “o tempo fechou entre dois grandes medalhões da medicina brasileira”. Alencar, verificou-se então, tinha um tumor maligno na região posterior da parede abdominal. A equipe médica encarregada da cirurgia era liderada pelo doutor Raul Cutait, renomado cirurgião gastroenterologista que já atendeu a diversas personalidades de destaque na vida pública brasileira, inclusive o presidente Lula. Ao time se incorporou, brevemente, o médico Miguel Srougi, professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e considerado um dos maiores cirurgiões do aparelho urinário do mundo. Por detalhes que nunca vieram a público, Srougi divergiu abertamente do encaminhamento pretendido por Cutait na cirurgia e retirou-se da sala.
O próprio Srougi, médico de personalidade discretíssima, acabou confirmando a história no dia 5 de novembro passado, em carta tão sucinta quanto franca encaminhada à seção de leitores da Folha de S. Paulo, que o mencionara em noticiário anunciando a operação do vice em Nova York. “Ao contrário do que tem sido divulgado”, dizia a carta, “não participei em julho passado da condução do caso do vice-presidente José Alencar, atingido por enfermidade abdominal, por ter julgado que o tratamento proposto era incorreto”. Mais adiante, esclarece: “Durante o ato cirúrgico, realizado por outro profissional, fui convocado às pressas para resolver um impasse inesperado e nele permaneci por cinco minutos (...)”.
A reportagem do JB, a que o governo reagiu com espesso, pétreo silêncio, lembrava: “Não se conhecem detalhes de uma ou outra orientação médica, mas o fato é que o vice precisou ser operado novamente no dia 14 de novembro de outro tumor na mesma região”, desta vez em Nova York. A mesma matéria concluiu dizendo: “Nem a equipe médica nem o governo comentam o assunto, mas o otimismo e a exuberância do vice-presidente espargem uma nuvem de incertezas quanto aos prognósticos sobre sua saúde”.
E eis aí o problema: o primeiro turno da eleição presidencial se deu no dia 2 de outubro, e desde julho – quase três meses antes, portanto – se sabia que o vice concorrendo na chapa do presidente era portador de uma doença grave, de incerta perspectiva de cura. Tanto que Alencar necessitou de uma segunda e demorada cirurgia menos de 120 dias depois da primeira e ainda necessita de quimioterapia. Mas ninguém – nem Lula, nem o próprio Alencar, nem o PT, nem qualquer ministro, assessor ou auxiliar do presidente ou de seu comitê eleitoral – parece ter dedicado um único segundo de atenção a esta circunstância como relevante a ponto de pesar na manutenção ou não de Alencar na chapa presidencial. Apesar dos méritos de Alencar e do respeito notório que merece de Lula, é como se o cargo de vice, e o aspirante a ele, não tivessem a menor importância.
E, no entanto, os inventores do presidencialismo – os americanos – costumam dizer, em expressão a um só tempo poética e terrível, que o vice, freqüentemente esquecido no dia-a-dia da política, está a apenas “uma batida de coração” da Presidência. Dos 43 presidentes americanos desde George Washington, nada menos que doze foram vices que acabaram assumindo o posto definitivamente (e só um deles, o recém-falecido Gerald Ford, por renúncia do titular). No Brasil, desde sempre temos vivido o que chamei em textos anteriores de “o paradoxo do vice”: o camarada não tem importância nenhuma, até que os sortilégios da política o fazem ter a suprema importância. Na República Velha (1889-1930), três vices se efetivaram no cargo. Na efêmera democracia de 1946 a 1964, dois dos seis presidentes foram vices que assumiram, Café Filho (1954-1955) e João Goulart (1961-1964). Dos cinco presidentes posteriores à redemocratização de 1985, dois elegeram-se vices, José Sarney (1985-1990) e Itamar Franco (1992-1995).
Ninguém, nem mesmo seus adversário ferrenhos, deseja que ocorra um problema de saúde que afaste o presidente Lula do cargo. Da mesma forma, não existe uma só pessoa, no mundo político, que não torça para o restabelecimento completo do vice José Alencar. Mas a conclusão do exposto acima é que precisamos ter mais cuidado na escolha dos vices – e esse cuidado, que inclui competência técnica, aptidão política e algumas qualidades adicionais, deve obrigatoriamente passar pela preocupação com seu estado de saúde. Agir de outra maneira configura uma demonstração de falta de transparência e, também, de irresponsabilidade que o país e os cidadãos não podem tolerar.
A saúde dos governantes não é questão privada, é -- ou deveria ser -- assunto de Estado. Por falar nisso, o quanto a opinião pública sabe do real estado do presidente interino José Alencar? Que tal o governo dar alguma satisfação aos cidadãos?
setti@nominimo.ibest.com.br
Fonte: NOMINIMO
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