Publicado em 26 de agosto de 2023 por Tribuna da Internet
Demétrio Magnoli
Folha
Lula viajou para a cúpula do Brics com uma mochila de utopias. Xi Jinping, pelo contrário, levou na bagagem um plano estratégico realista. A ampliação do bloco assinala a vitória de quem sabe o que quer. O brasileiro concentrou-se no impossível: o apoio chinês à inclusão da Índia, do Brasil e da África do Sul no Conselho de Segurança (CS) da ONU e a criação de uma “moeda de referência” para transações entre os países do Brics. Colheu apenas palavras condescendentes.
A China, rival estratégica e militar da Índia, opõe-se à reforma do CS. Cinco moedas não conversíveis são incapazes de parir uma alternativa global ao dólar. Um tanto cruel, o próprio porta-voz do Kremlin explicou que a ideia da moeda mágica não se encaixa no futuro previsível.
NÃO-ALINHADOS – Desfeitos os sonhos, Xi Jinping assumiu o comando da pauta, criticou os “clubes exclusivos” (leia-se G7) e demandou a abertura das portas do Brics. A China almeja produzir uma versão modernizada do Movimento dos Não-Alinhados (NAM), que agrupou mais de 40 países nos seus anos de glória, entre as décadas de 1950 e 1960.
O NAM foi uma representação geopolítica do Terceiro Mundo na fase inicial da Guerra Fria e um trampolim de projeção de influência da Índia neutralista de Nehru. O Brics, no seu capítulo 2, é visto pela China como plataforma multilateral de contestação da liderança dos EUA. Xi Jinping quer uma assembleia, não um comitê seleto.
Rússia e África do Sul concordam. Durante a cúpula, Putin vingou-se de Prigojin, abatendo seu avião privado, e do general Surovikin, demitindo-o da chefia da Força Aérea. Engajada numa guerra imperial e cada vez mais dependente da China, a Rússia enxerga na ampliação do Brics um instrumento para obter algum amparo diplomático. Já a África do Sul nutre o projeto de apadrinhar o ingresso de diversos países africanos, estendendo sua influência regional.
CHOQUE DE INTERESSES – A ampliação, porém, choca-se com os interesses da Índia e do Brasil. A Índia de Nehru bloqueou a entrada da China maoista no NAM. No Brics ampliado, o cenário é outro: a voz chinesa soará mais alto que todas as demais. Por isso, o governo indiano de Modi, que acaba de firmar extensos acordos de cooperação militar com os EUA, resiste ao delineamento de um “Sul Global” antiocidental.
Inexiste rivalidade estratégica entre Brasil e China. Entretanto, o projeto chinês de ampliação reduz o peso específico do Brasil no bloco e tende a provocar fricções diplomáticas indesejáveis com os EUA e a Europa. Não por acaso, Lula juntou-se a Modi na resistência à abertura irrestrita do portal do Brics e, contrariando a ala petista embriagada pelo antiamericanismo, declarou que “a gente não quer ser contraponto ao G7 ou ao G20”.
Superficialmente, o acordo final de inclusão de seis novos integrantes parece um compromisso equilibrado. Arábia Saudita, Emirados Árabes e Egito ingressam pelas mãos da China e da Índia; Irã, pelos bons ofícios da Rússia; Argentina, por obra do Brasil; Etiópia, por gentileza da África do Sul. De fato, a decisão é um nítido triunfo chinês, pois não há como traçar um contorno lógico para o Brics ampliado.
HADDAD FEZ PIADA – O ministro Fernando Haddad tentou, inutilmente, definir uma fronteira. Perante o Fórum Empresarial, pregou a união do bloco em torno de “valores comuns” como “liberdade” e “soberania nacional”, numa passagem destinada a divertir os líderes chineses e russos.
O G7 é o clube exclusivo das potências econômicas organizadas como democracias liberais. O G20 é o clube fechado das 19 maiores economias mais a União Europeia.
Já o Brics é um fórum acidental inspirado pelo paper de um analista do Goldman Sachs. O contorno arbitrário sinalizado por seu nome não tem substituto: daqui em diante, o bloco crescerá ao sabor da vontade de seus integrantes principais. Xi Jinping retorna de Joanesburgo com o prêmio que buscava. Lula volta de mochila vazia.