Nada é simples no país que os Estados Unidos desmontaram em 2003 e ninguém nunca mais conseguiu montar de novo.
Por Vilma Gryzinski
Uma vez derrubada a ditadura de Saddam Hussein, os iraquianos xiitas iriam todos obedecer fielmente as ordens emanadas de seus irmãos de fé do Irã, muito mais organizados e disciplinados.
Esta foi uma das conclusões óbvias sobre a invasão americana de um país complicado, dividido por fissuras religiosas e étnicas, uma construção artificial que só a brutalidade atilada de Saddam conseguia manter de pé.
Como sempre, a realidade é mais complicada. A explosão de distúrbios que aconteceu nos últimos dias em Bagdá, com invasão do Parlamento, da sede de governo e de outras instituições – com direito a mergulho na piscina dos poderosos, evocando as recentes cenas no Sri Lanka – é uma demonstração disso.
Dessa vez, são xiitas se matando entre si. Uma corrente segue os aliados do Irã; outra, que invadiu a Zona Verde e botou para quebrar, é de adeptos de Moqtada Sadr, um líder religioso caprichoso e influente, que com um simples tuíte põe milhares de pessoas nas ruas.
Sadr já fez de tudo: matou americanos, matou iraquianos seguidores da corrente majoritária, a sunita, e colocou suas milícias para fazer o trabalho sujo contra o Estado Islâmico. Seu Exército do Mahdi – a designação remete à figura messiânica que os xiitas esperam para anunciar o fim dos tempos – reencarnou com o orwelliano nome de Batalhões da Paz.
As alianças políticas acompanharam os tempos. Sadr deixou muita gente de queixo caído ao incluir em seu bloco político deputados comunistas, curdos e sunitas – tudo o que os xiitas, em princípio, odeiam.
O bloco foi o mais votado, com 73 deputados num total de 329, mas sem maioria para fazer um governo, alimentando um impasse que parece ser o estado natural do Iraque. Em junho, Sadr mandou todo mundo renunciar só para não ter que fazer um acordo com os xiitas que seguem a linha de fidelidade ao Irã.
O nacionalismo de Sadr irrita o regime iraniano, que se vê como o tutor dos primos rebeldes do outro lado da fronteira. Existe também, implicitamente, um sentimento de superioridade dos persas em relação aos indisciplinados árabes.
Os xiitas têm a tradição de seguir figuras religiosas carismáticas e Moqtada Sadr vem de uma família de líderes venerados. Seu pai, dois irmãos e o sogro foram mortos pela ditadura de Saddam. O bairro xiita mais conhecido de Bagdá tem o nome de Sadr City, em homenagem ao pai dele.
Brutal no tratamento dos xiitas – e de qualquer outra potencial ameaça a seu poder, inclusive na própria família -, Saddam manteve o Iraque unido a ferro e fogo. A remontagem do país tem sido sucessivamente frustrada.
Moqtada Sadr é um fio desencapado no arco de influência que o Irã constrói com paciência estratégica, estendendo-se pelo Iraque, a Síria e o Líbano. Muito próximo de alcançar outra vitória, com a reencarnação do acordo nuclear rasgado por Donald Trump, o que o livrará do peso das sanções americanas, o regime iraniano tem que aturar os rompantes de Sadr, que já tentou até uma aproximação com a Arábia Saudita. Os Estados Unidos também procuram usar Sadr, com seus milhões de seguidores, como contraponto à influência iraniana.
Não interessa ao Irã uma explosão no Iraque, com suas sanguinárias disputas internas e uma permanente instabilidade. Eventualmente, cabeças frias podem até tentar uma recomposição com o esquentadíssimo Moqtada Sadr, que mandou seus seguidores saírem das ruas depois de confrontos que deixaram 30 mortos e anunciou o encerramento de suas atividades políticas.
Mas uma hora a paciência acaba.
Revista Veja