Comunista convicto que queria melhorar o sistema, o líder soviético protagonizou o milagre do desmanche do comunismo com violência mínima.
Por Vilma Gryzinski
Como acabaria o mundo da história contrafactual? O mundo em que Mikhail Gorbachev não se tornaria o chefe da cinzenta e enferrujada liderança soviética? Sem o homem que começou tentando reformar um sistema que mandava foguetes para o espaço mas não conseguia produzir televisões que não explodissem na cara de cidadãos do maior império da Terra?
Ninguém pode responder – e o estado de alerta em que Vladimir Putin colocou o planeta ao liberar ameaças constantes de guerra nuclear não nos deixa exatamente num lugar tranquilo.
Mas não podemos esquecer do prodígio que foi o fim quase que totalmente pacífico de um mundo que terminou quando Gorbachev pediu uma caneta emprestada – a sua não funcionava – e assinou a dissolução da União Soviética, a utopia distópica criada por Vladimir Lênin que não chegou aos 70 anos.
A noite de 25 de dezembro de 1991 foi melancólica em Moscou, ao contrário da euforia quase incrédula que cercou a autolibertação do colar de satélites soviéticos no incrível ano de 1989.
Em 9 de novembro daquele ano, Gorbachev tinha ido dormir com o Muro de Berlim em pé. Acordou com a monstruosidade, símbolo de tudo o que havia de errado com o comunismo, derrubada. O destino já havia sido selado quando o homem com a mancha vermelha na testa, um hemangioma comparado à “marca da Besta”, ouviu um grito se erguer entre as pessoas que haviam ido ver como seria o encontro do propagador da glasnost com o mais ortodoxo dos líderes comunistas, o alemão Erich Honecker.
“Gorbi, Gorbi, hilf uns”.
“Ajude a gente”.
A União Soviética tinha 338 mil militares na Alemanha Oriental. O Exército Vermelho tinha sido treinado para chegar em “uma semana” a Berlim se houvesse uma guerra. Os mísseis nucleares soviéticos apontavam para todos os adversários, próximos ou distantes, táticos ou estratégicos.
Foi por causa de Gorbachev que nenhuma dessas forças foi usada, com resultados inevitavelmente tétricos, ao decidir que a Hungria de 1956 e a Checoslováquia de 1969 não se repetiriam. Ele estava fora do negócio de manter países vassalos à força e conseguiu manter na linha todo o imenso aparato de segurança que sustentava o totalitarismo.
Houve uma tentativa de golpe em agosto de 1991, quando Gorbachev passava férias na Crimeia, mas um certo Boris Ieltsin arrebatou uma pequena multidão ao subir num tanque em frente ao Parlamento e a reação fracassou.
Gorbachev ganhou o Prêmio Nobel da Paz e, durante alguns anos, correu o risco de cair no descrédito. Foi morar na Alemanha, para tratar a mulher Raisa, fez publicidade para a Louis Vuitton e enlaçou Sharon Stone numa festa em Londres.
Ao contrário dos ex-vassalos, que conseguiram fazer com sofrimento mínimo a transição do comunismo para regimes democráticos com economias abertas, os russos penaram. O mundo que Gorbachev havia desmanchado foi substituído por um vale-tudo em que os muito espertos faziam negócios espetaculares e o resto da população via trabalho, serviços públicos, aposentadorias e orgulho nacional arrastados na lama.
Gorbachev se tornou uma figura detestada pela maioria dos russos. A democracia ao estilo ocidental não prosperou e Vladimir Putin, que havia passado a noite da queda do Muro queimando documentos na estação da KGB em Dresden, iniciou uma carreira política que o levou ao delírio imperial de hoje.
Gorbachev ficou firmemente ao lado dele. “Estou absolutamente convencido de que Putin defende atualmente os interesses da Rússia melhor do que ninguém”, disse em visita à Alemanha depois da anexação da Crimeia.
Em retribuição, Putin deverá homenageá-lo, relevando a famosa definição sobre o fim da União Soviética como “a maior catástrofe geoestratégica do século XX”.
Para quem prefere a liberdade e a democracia, com todos seus tantos defeitos, foi o maior milagre de um século em que os russos talvez tenham sofrido mais do que todos os outros povos, incluindo os que oprimiram.
Revista Veja