Fábio Zanini
Folha
Os acenos mútuos entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (ex-PSDB) para compor uma chapa única na disputa presidencial reavivaram em líderes da direita a tese do “teatro das tesouras”.
A expressão, também chamada de “estratégia das tesouras”, foi mencionada nos últimos dias, por exemplo, pelo filósofo Olavo de Carvalho e pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
ANTISSISTEMA – “O sistema cria suas próprias dicotomias para que você imagine viver numa democracia saudável, mas na verdade é o teatro das tesouras. Bolsonaro é a única oposição a tudo isso aí, o verdadeiro antissistema”, tuitou o filho do presidente, em 18 de dezembro.
Variações destas críticas foram replicadas aos montes por bolsonaristas em redes sociais desde que o flerte entre Lula e Alckmin, ex-adversários ferozes na disputa presidencial, ganhou corpo, no final do ano passado.
A exemplo de outras expressões, como “marxismo cultural”, o “teatro das tesouras” é uma imagem usada pela direita para apontar uma suposta estratégia de dominação esquerdista.
TERIA SIDO LÊNIN – A expressão teria origem numa tática elaborada por ninguém menos que Vladimir Lênin, embora não haja registro de que o pai da revolução bolchevique a tenha mencionado com esse nome. A expressão é comumente atribuída ao escritor ucraniano Anatoliy Golitsyn (1926-2008), desertor da KGB soviética.
A metáfora não é difícil de entender. Uma tesoura, quando fechada, é um objeto único. Abertas, suas lâminas parecem estar em oposição, mas na realidade cortam para o mesmo lado, e obedecendo ao mesmo comando (a mão).
NA MESMA DIREÇÃO – Transpondo para a política, é como se forças aparentemente opostas (PT e PSDB, por exemplo) operassem de forma coordenada, avançando na mesma direção, que pode ser chamada de social-democrata, progressista ou até comunista, ao gosto do freguês.
Haveria apenas uma ilusão de competição, com o objetivo real de deixar fora do jogo os representantes da verdadeira mudança: a direita, os liberais, os conservadores, os bolsonaristas.
Como prega Olavo, Lênin inaugurou esse sistema na antiga União Soviética, estimulando uma “estratégia das tesouras” em que uma lâmina seria a de León Trótski e a outra de Josef Stálin. Inimigos mortais (literalmente), mantiveram o objetivo maior de consolidar o regime comunista e impedir a tomada de poder pela burguesia capitalista.
COMPETIÇÃO ILUSÓRIA – Mesmo a Revolução de 1917, que derrubou o regime czarista, teria sido possível a partir de uma ilusão de competição entre as facções comunistas menchevique e bolchevique, uma espécie de “teatro das tesouras” que Lênin soube muito bem explorar, segundo essa visão.
No Brasil, o termo foi popularizado em 2018 por uma série de sete vídeos da produtora conservadora Brasil Paralelo (que, aproveitando o flerte Lula-Alckmin, relançou o material, disponível no YouTube).
Cada filme, que tem de 30 a 40 minutos, trata de uma eleição presidencial entre 1989 e 2014, argumentando que nunca houve competição real fora do espectro que vai do PT ao PSDB.
DIZ FERRUGEM – “Durante algumas décadas, a maior parte dos brasileiros teve a ilusão de que podia pensar em diferentes ideias e votar em diferentes propostas. Não era verdade. Não existia campo de debate liberal, conservador etc. Todas as propostas possuíam diferenças sutis de discurso e de prática, mas encaminhavam para as mesmas políticas e valores”, diz Lucas Ferrugem, produtor da série “O Teatro das Tesouras”, da Brasil Paralelo.
Segundo ele, isso fica cabalmente demonstrado no movimento de aproximação entre o ex-presidente e o ex-governador de São Paulo.
“Não há oposição ideológica, moral ou de ideias concretas entre Alckmin e Lula. Eles se xingaram publicamente no passado por um único motivo: disputavam o mesmo cargo de poder”, argumenta.
NÃO HAVIA DISPUTA – Para Ferrugem, “a briga era teatro das tesouras, a união política entre eles é o que corresponde de fato à realidade”.
Mais do que isso, afirma, o balé entre Lula e Alckmin é prova inconteste de que petistas e tucanos são na verdade uma coisa só. “O PT é um partido socialista. E o PSDB também. A social-democracia é o socialismo democrático”, afirma.
Ainda não está certo que a união entre Lula e Alckmin vá vingar. Se realmente ocorrer, oferecerá um discurso pronto para os bolsonaristas, para quem é possível enxergar uma linha de ação que parte de Lênin e chega até o picolé de chuchu.