Filipe Vidon
O Globo
A Câmara dos Deputados concluiu na quarta-feira a votação de projeto que flexibiliza a lei da improbidade administrativa. Agora, o texto vai a sanção presidencial. A iniciativa modifica o entendimento sobre crimes contra a administração pública. Um dos pontos prevê que a responsabilização só ocorra se houver comprovação de dolo, ou seja, intenção de lesar o poder público. Hoje, há punição ampla por ato culposo, mesmo quando o prejuízo não é causado propositalmente.
Enquanto alguns defendem que as mudanças são positivas para coibir os abusos na aplicação da lei de improbidade, outros argumentam que as novas regras abrem espaço para a impunidade. A divergência também está presente nas opiniões dos advogados Carlos Ari Sundfeld, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público e especialista em direito administrativo, e Fábio Medina Osório, jurista e ex-Ministro-chefe da Advocacia- Geral da União.
Qual a avaliação sobre as mudanças propostas na nova lei de improbidade?
Carlos Ari – De maneira geral considero as mudanças positivas. O objetivo da reforma conduzida no Congresso é permitir que se foque melhor a ação de improbidade e o diagnóstico, que considero correto, é o de que as ações de improbidade tiveram seu curso desviado nos últimos anos. O Ministério Público, quem mais propõe esses processos, entrou no jogo político e passou a propor denúncias de improbidade para questionar políticas públicas, e não irregularidades objetivas dos gestores públicos.
Medina Osório – As mudanças propostas no Congresso são muito negativas. Não estou dizendo que não houve abusos no manejo da Lei de Improbidade, mas a forma de corrigir seria outra, não é liquidando a lei. É necessário mais orientação, mais unidade no Ministério Público, mas não justifica as alterações propostas no Congresso, que matam a eficácia da lei. No cenário atual, uma série de condutas culposas ficam de fora da tipificação da lei, no caso de violação de princípios, por exemplo.
Restringir apenas ao Ministério Público a proposição dessas ações não seria um retrocesso?
Carlos Ari – Eu considero essa decisão correta, tendo em vista que o grau de maturidade institucional em outras esferas é muito baixo e o uso desse instrumento para perseguição política nos municípios, por exemplo, é enorme. Reservar a abertura de ações de improbidade ao MP é proporcionar essa ferramenta ao órgão mais neutro possível, pelo menos em teoria. Além disso, a Advocacia Geral da União e as Procuradorias Gerais Estaduais têm diversos caminhos para punir quem cometeu um ato lesivo ao erário, como os mecanismos previstos na lei anticorrupção aprovada em 2013.
Medina Osório – Entendo que é um grande retrocesso, porque as advocacias públicas têm um trabalho produtivo nessa área e restringir a legitimidade da aplicação da lei não é o caminho. Dessa maneira, o Congresso está desprotegendo o patrimônio público. Seria viável pensar em uma restrição para as advocacias municipais, mas a Advocacia Geral da União e a Procuradoria Geral dos estados têm tradição de autonomia e, portanto, configura uma perda muito relevante.
A necessidade de provar o dolo não amplia a chance de impunidade?
Carlos Ari – Não acredito nessa tese. A ação de improbidade virou sinônimo de produtividade, elogios e espaço na mídia. A quantidade de ações desse tipo movidas sem embasamento jurídico é enorme, provoca o bloqueio imediato de bens e por vezes se arrasta por anos sem ser solucionado. Como não conseguem provar a má fé, mas querem taxar de bandido na primeira oportunidade? As pessoas acham que vai acabar com o combate à corrupção, mas considero um equívoco total, essas mudanças podem melhorar e tornar mais objetivo o combate à corrupção.
Medina Osório – Acredito que essa é uma previsão completamente desnecessária, que não deveria estar na Lei. O dolo tem que ser sempre provado através do exercício do poder investigatório. Isso faz parte lógica do devido processo legal. Esse dispositivo não é sinônimo de aumento da impunidade, pois a presunção de inocência das pessoas já era prevista em lei.
Estabelecer a prescrição dessas ações em quatro anos é razoável ou representa uma ameaça grave à tramitação de processos de improbidade?
Carlos Ari – Ao meu ver, o estabelecimento de um prazo é positivo diante de um problema real que enfrentamos. Uma técnica muito utilizada, sobretudo pelo MP, que é quem mais propõe ação de improbidade é indiciar dezenas de pessoas na mesma ação. São processos sem objetivo, que se transformam em ações que não terminam nunca, não vão para frente. Isso é uma aposta, mas esse dispositivo pode acabar incentivando o MP a focar em ações em que há a real chance de condenação, em vez de propor ação “para dar exemplo”. Acho que vai tornar a lei de improbidade mais eficaz, com menos injustiças e mais celeridade aos casos em que ela realmente deve ser aplicada.
Medina Osório – A prescrição intercorrente, da maneira como está, é um dos pontos mais graves dessa reforma. O limite de quatro anos torna praticamente impossível a aplicação da lei, é fulminante. No judiciário brasileiro nenhum processo é julgado em quatro anos, portanto, seria uma perda enorme. Também é preciso lembrar que estamos tratando de direito material em que as decisões são retroativas e, por isso, abrirá um precedente para acabar com todas as ações de improbidade em andamento no país.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Vejam a diferença dos pontos de vista. Como a nova lei beneficia os réus, o advogado Carlos Ari está pronto para aplaudi-la, enquanto o ex-ministro Medina Osório, considerado o maior especialista brasileiro em improbidade administrativa, com obras publicadas sobre o tema, nos mostra por que o Brasil é o país da impunidade. (C.N.)