Publicado em 26 de setembro de 2021 por Tribuna da Internet
Eurípedes Alcântara
O Globo
Quando você consegue ao mesmo tempo desagradar à direita e à esquerda, são grandes as chances de estar com a razão. É o caso da pesquisadora americana Kathryn Paige Harden, professora de psicobiologia evolutiva na Universidade do Texas. Ela meteu sua colher de pau na panela da sopa mais quente de nosso tempo, a discussão sobre raça.
Passou a apanhar nas redes desde que seus estudos foram divulgados, primeiro num artigo na revista New Yorker, depois no livro “The genetic lottery “ (“A loteria genética” ), que tem como subtítulo traduzido para o português “Por que o DNA importa para a igualdade social”.
IRRACIONALIDADE DIGITAL – Acuada pelo avanço da lava vulcânica da irracionalidade digital militante, a professora recuou no Twitter: “Houve reações fortes ao artigo da New Yorker e não posso responder a todas elas aqui. Mas quero reafirmar que raça não é genética”.
De modo geral, simplificando a ponto de caricaturar a questão, a ideia de que raça não é definida pelo DNA com que a pessoa vem ao mundo não é o mesmo que afirmar que os genes são irrelevantes (posição da esquerda), nem que eles são os únicos responsáveis pelo destino de um indivíduo (posição da direita).
A doutora Kathryn importuna a esquerda e a direita, primeiro, por demonstrar que não existem simplificações científicas possíveis quando o assunto é a complexa interação da hereditariedade de cada um com o ambiente social, econômico e político em que nasce e vive. Como cantou Chico César, “deve ser legal / ser negão no Senegal”, mas já não é tão fácil em outras paragens, quando sua “mãe é mãe solteira / e tem que fazer mamadeira / todo dia / além de trabalhar / como empacotadeira / nas Casas Bahia”.
VIVER ENTRE IGUAIS – No Senegal, a pessoa de pele escura nasce e vive entre iguais, e a tonalidade de sua epiderme não tem peso específico sobre sua saúde psicológica ou suas chances de sucesso profissional e social. Já nascer negro numa sociedade onde a maioria esmagadora da classe dominante é formada por brancos significa ter de escalar montanhas de pedras soltas todos os dias, do berço ao túmulo.
Em segundo lugar, a professora desagradou à militância por mostrar que o prêmio da loteria genética que dota alguém individualmente de atributos hereditários especiais de inteligência ou destreza corporal em excesso pode sair tanto para um negro quanto para um branco, sem preferências raciais. A biologia é neutra no nível individual.
A encrenca começa quando a genialidade genética de um negro encontra hostilidade e é anulada por circunstâncias sociais adversas — nascer num gueto racial de Chicago, no exemplo dela.
PERPETUAR O PRECONCEITO – Mas nascer num gueto nada tem de biológico. É uma construção sociocultural que impede que o prêmio genético individual se expresse como poderia no conjunto da população negra:
“Juntar raça e ancestralidade genética numa única ideia é a maneira mais cruel de perpetuar o preconceito de que as desigualdades de desempenho, vistas, por exemplo, nos testes de Q.I., são devidas a diferenças biológicas inatas.
Quando os primeiros imigrantes italianos, irlandeses e judeus chegaram aos Estados Unidos, eles não eram considerados socialmente brancos, e seu desempenho educacional e profissional era condizente com o de párias, mesmo sendo tão brancos quanto os integrantes da classe dominante.
DIREITA E ESQUERDA – Foi a contragosto que a professora Kathryn Paige Harden se obrigou a contextualizar sua demonstração de que “raça não é um conceito biológico válido no campo da ciência” com o mundo real dos combates nas ruas das grandes cidades dos Estados Unidos.
Ela diz esperar que seus estudos incomodem os que, à direita, se sentem “moralmente justificados” por acreditar que injustiça racial é de origem puramente genética — e, portanto, não há o que fazer. Espera também cutucar o pessoal à esquerda que “enfraquece seu argumento por igualdade” pela negação do papel dos genes sobre indivíduos e populações.