Painel exibe prontuário médico da mãe do empresário Luciano Hang durante a CPI da Pandemia, no dia 22 de setembro.
Aguardada pela CPI da Pandemia nesta terça, advogada Bruna Morato, que ajudou a produzir dossiê com denúncias, conta ao EL PAÍS como a operadora de saúde persegue profissionais há mais de um ano
Por Felipe Betim
São Paulo - Representante de 12 médicos que trabalham ou trabalharam na Prevent Senior, a advogada Bruna Morato promete “levar a verdade” à CPI da Pandemia. Ela foi convocada para depor na próxima terça-feira, dias depois de os senadores ouvirem, na última quinta-feira, o diretor-executivo da operadora de saúde, Pedro Benedito Batista Júnior, refutar um dossiê que aponta irregularidades no tratamento de pacientes com covid-19. Morato diz ter uma série de documentos que respaldam o conteúdo do dossiê, resultado de um ano e meio reunindo as denúncias apresentadas por seus clientes e encaminhadas ao Ministério Público. Ao longo desse período, explica ela, a Prevent Senior “caçou” os profissionais responsáveis pelas denúncias, para que sirvam de exemplo a outros médicos. “Estão sendo perseguidos, estigmatizados e desqualificados”, diz a advogada.
Morato atua na área de consulta jurídica e assessora médicos vinculados à Prevent Senior desde 2014. Em março deste ano, ainda no início da pandemia, eles começaram a relatar à advogada as primeiras irregularidades sobre ao uso de cloroquina e outros medicamentos ineficazes. O Ministério Público foi acionado e abriu inquérito. “Eu também levei muito tempo para acreditar na história, para entender a história”, conta. “Obviamente tive que pedir provas, documentos. Busquei pacientes para checar as denúncias. As coisas foram acontecendo como uma bola de neve. Tudo foi duplamente checado”, assegura.
Em julho deste ano, a Prevent Senior contava com 542.471 clientes, a maioria em São Paulo, com um aumento de quase 12% em relação a agosto do ano passado, segundo os dados disponíveis no portal da Agência Nacional de Saúde (ANS). Cerca de 4.000 pacientes internados na rede de hospitais da operadora morreram com covid-19 ao longo da pandemia. Isso representa cerca de 22% dos 18.000 usuários que chegaram a ser hospitalizados por conta da doença nas unidades administradas pela empresa, segundo os dados divulgados por Batista Júnior durante a CPI.
As suspeitas apontadas pelo dossiê são gravíssimas. O documento mostra como a operadora, voltada para idosos, testou em seus hospitais o chamado kit-covid —composto por hidroxicloroquina e ivermectina, entre outros medicamentos ineficazes contra a covid-19— em pacientes infectados sem o aval dessas pessoas ou da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Quer dizer, elas teriam sido cobaias de um experimento ilícito. Além disso, a seguradora também teria ocultado mortes pela doença, como forma de apresentar as melhores estatísticas de recuperação. Antes disso, no início da pandemia, a empresa chegou a acumular 30% das mortes por covid-19 no Brasil, concentrando muita atenção negativa naquele momento.
Durante a sessão no Senado de quinta-feira, Batista Júnior reclamou que os médicos denunciantes acessaram prontuários de pacientes que não eram seus, extraíram dados e divulgaram para a imprensa e para a CPI. Também afirmou que os prontuários compilados no dossiê estão incompletos e podem ter sido adulterados. “É mentira”, afirma Morato, que aparecerá em público pela primeira vez desde que as denúncias começaram a vir à tona, por meio do canal Globonews. “As informações foram entregues aos senadores de forma integral pelo Conselho Regional de Medicina [de São Paulo, Cremesp]”, explica. “São mais de 4.000 páginas devidamente apresentadas pela própria instituição, em ordem cronológica, com a evolução do dia a dia dos pacientes. Nós apenas indicamos onde estavam essas informações, para que os senadores pudessem solicitá-las ao organismo”, acrescenta. A advogada também garante que as mensagens de texto de celulares que os senadores expuseram durante a sessão com Batista Júnior foram entregues de forma integral, sem edições ou cortes.
Esses prontuários chegaram ao Cremesp porque a Prevent Senior denunciou os médicos ao conselho por supostamente terem vazado informações sobre determinados pacientes, indica Morato. Seria mais uma forma de persegui-los. “A partir disso, o próprio Cremesp solicitou esses prontuários para avaliar as informações.” Morato reafirma que os profissionais não acessaram os dados de pacientes que não eram seus, o que seria considerado uma infração médica. Mas como, então, esses profissionais ficavam sabendo de casos como o do médico Anthony Wong e de Regina Hang, mãe do empresário bolsonarista Luciano Hang? Ambos morreram de covid-19 após passarem por tratamento com o ineficaz kit-covid, mas, em seus prontuários e atestados de óbito, não consta a doença. “Quando pacientes com certa notoriedade são internados e passam a ser atendidos por um grupo de médicos, esse mesmo grupo de profissionais passa informações para seus colegas”, explica a advogada. “Independentemente do acesso ao prontuário, os médicos começam a comentar entre si que fulano evoluiu de tal forma, está tomando tal medicamento...”
Batista Junior alegou ainda à CPI da Pandemia que os médicos denunciantes haviam sido demitidos por “graves falhas éticas e morais, como invasão de prontuários e tratamento inadequados”. Mas, de acordo com Morato, a Prevent Senior sequer sabe quem eles são exatamente. A empresa, prossegue a advogada, apenas “intui” quem são e promove demissões.
Conforme as informações foram saindo, explica Morato, outros médicos passaram a também colaborar com informações. “Começamos a receber as respostas que não tínhamos”, explica. Sobre seus clientes, ela garante que estão todos empregados e trabalhando. A disputa com a Prevent Senior não afetou a credibilidade deles no mercado. “Eles amam seus paciente e só querem prestar um bom serviço médico, trabalhar com autonomia e dar o tratamento correto”, explica. “Mas, a partir do momento em que você existe um conceito arraigado de lealdade e obediência dentro de uma instituição como a Prevent Senior, não existe autonomia”, conclui ela, refutando a retórica da empresa de que os médicos devem ter autonomia para prescrever medicamentos, inclusive aqueles ineficazes. No caso da operadora, os indícios apontam que a autonomia para fazer o certo não existe.
El País