Publicado em 5 de maio de 2021 por Tribuna da Internet
Deu em O Globo
A independência da Argélia deixou sequelas profundas na França. Uma ala militar sempre considerou o general Charles de Gaulle traidor da pátria por ter cedido a soberania aos argelinos. Tal ala, que combatera os separatistas na Guerra da Argélia nos anos 1950, encetou o fracassado “putsch de Argel” contra De Gaulle em 1961.
Dez anos depois, ajudou a fundar a Frente Nacional, o partido de extrema direita criado por Jean-Marie Le Pen aglutinando descontentes com o gaullismo, hoje transformado na Reunião Nacional de sua filha, Marine.
MÉTODOS DE TORTURA – Foram militares franceses egressos da Guerra da Argélia que, ao longo dos anos 1960 e 1970, ensinaram métodos de tortura desenvolvidos e aplicados nos argelinos a seus colegas dos países latino-americanos onde os golpes deram certo e resultaram em ditaduras, entre eles o Brasil.
Seis décadas depois, fantasmas daquele período continuam a assombrar a caserna francesa.
No aniversário de 60 anos do “putsch de Argel”, no último dia 21 de abril, 20 generais franceses da reserva, apoiados por militares da ativa, publicaram na revista de extrema direita “Valeurs Actuelles” uma carta aberta contra o que chamam de “desintegração” do país.
IMIGRANTES DO ISLÃ – “Desintegração que, com o islamismo e as hordas da periferia, acarreta a separação de múltiplas parcelas da população para transformá-las em territórios submetidos a dogmas contrários à nossa Constituição”, diz a carta.
Os signatários conclamam os políticos “que dirigem o país” a “erradicar esses perigos” para combater a violência. “Não é mais hora de tergiversar, senão amanhã a guerra civil porá fim a esse caos crescente, e os mortos, cuja responsabilidade recairá sobre os senhores, se contarão aos milhares.”
É tentador traçar um paralelo entre a manifestação dos militares franceses e o papel crescente que seus colegas brasileiros têm assumido na política.
AS DIFERENÇAS – Lá, há uma mobilização por ocupar um espaço político maior. Aqui, o espaço já foi ocupado. Lá, o caminho para o poder passa pela extrema direita de Marine Le Pen, que aplaudiu o teor da carta da caserna. Aqui, pela de Bolsonaro.
Porém, por mais que a repercussão da carta lembre a de certos tuítes de generais brasileiros, as diferenças são mais significativas que as semelhanças. A ministra da Defesa francesa, Florence Parly, uma civil, imediatamente condenou a manifestação e prometeu punir o que lhe pareceu uma tentativa de sedição.
“Solicitei ao chefe de Estado-Maior que aplique as regras previstas no estatuto dos militares, ou seja, sanções”, afirmou. O primeiro-ministro Jean Castex a secundou, qualificando a iniciativa de “contrária a todos os nossos princípios republicanos, à honra, ao dever do Exército”.
“MEU EXÉRCITO” – Aqui, o presidente da República fala em “meu Exército” e trocou o ministro da Defesa, um militar da reserva, por outro mais suscetível a suas sugestões de usar as Forças Armadas em benefício de seu projeto político.
Toda a cúpula militar foi demitida por resistir às extravagâncias de Jair Bolsonaro. Exemplo de como as coisas funcionam numa democracia madura — e de como ainda não funcionam no Brasil.