Publicado em 16 de maio de 2021 por Tribuna da Internet
Bernardo Mello, João Paulo Saconi e Rayanderson Guerra
O Globo
Mesmo depois que estados começaram a devolver a cloroquina enviada pelo Ministério da Saúde no ano passado, diante de evidências de ineficácia da substância contra a Covid-19, o governo federal insistiu no envio de um volume similar de comprimidos para todo o país, priorizando gestões estaduais e municipais alinhadas ao discurso do presidente Jair Bolsonaro.
Levantamento do GLOBO com dados do Localiza SUS aponta que, de setembro a dezembro, 1,5 milhão de comprimidos foram devolvidos pelos estados. A partir do mesmo período, o governo Bolsonaro enviou mais 1,3 milhão de comprimidos, sendo 80% para aliados. Na primeira leva, de março a agosto, menos de 40% haviam chegado a gestões bolsonaristas.
INSISTÊNCIA MORTAL – Desde o fim do primeiro semestre de 2020, entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e órgãos de referência como o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos já desaconselhavam o uso da cloroquina em pacientes infectados pelo coronavírus.
A gestão do ministro Eduardo Pazuello seguiu enviando medicamentos ineficazes — e associados a aumento nas mortes de pacientes com Covid — impulsionada por uma doação de hidroxicloroquina do governo Donald Trump, que não utilizava mais o remédio — 609 mil comprimidos deste lote foram distribuídos até o mês passado, já na gestão de Marcelo Queiroga. Em paralelo a isso, o governo levou sete meses para assinar o contrato de compra de vacinas da Pfizer, prazo que foi alvo de questionamentos na CPI da Covid no Senado.
SEM DEVOLUÇÃO – Entre os estados com gestões alinhadas a Bolsonaro, Minas Gerais, Santa Catarina, Amazonas e Roraima respondem por metade (646 mil) dos comprimidos distribuídos pelo Ministério da Saúde desde setembro. Nenhum desses estados informou ter devolvido cloroquina ao governo, mesmo diante da falta de eficácia.
O estado do Amazonas recebeu 120 mil comprimidos em janeiro, em meio ao colapso na Saúde que é investigado pela CPI. O GLOBO revelou em março que uma equipe do Ministério da Saúde fez um tour por hospitais de Manaus à época recomendando o uso do medicamento, em meio à falta de insumos básicos, como oxigênio.
Outros 170 mil comprimidos foram entregues neste ano a municípios como Limeira (SP), Presidente Prudente (SP) e Porto Alegre, cujos prefeitos se alinharam publicamente ao discurso de Bolsonaro a favor do suposto “tratamento precoce”.
A OMS AVISOU… – Em outubro do ano passado, a OMS reiterou a ineficácia de medicamentos incluídos nos chamados “kit Covid”. “No fim de 2020, já existiam dados consolidados sobre malefícios da cloroquina e da hidroxicloroquina e explicações de por que não deveriam ser utilizados. A própria aceitação entre médicos diminuiu. É por isso que estados começaram a devolver” — avaliou o infectologista Julio Croda, da Fiocruz, que esteve no Ministério da Saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta.
Em Pirassununga (SP), que recebeu 13,5 mil comprimidos, o prefeito Dimas Urban (PSD) abandonou a defesa do medicamento. Urban, que é médico, alegou que via a hidroxicloroquina como “única arma disponível” no início da pandemia, mas disse ter se tornado cético à medida que saíam estudos.
— Confesso que eu duvidava do lockdown, mas tivemos resultados positivos ao adotar medidas restritivas. Acho inadmissível a postura que o presidente teve com as vacinas. Transformou em política besta, picuinha — afirmou.
“REMANEJADOS” – No total, o Ministério da Saúde distribuiu 7,5 milhões de comprimidos desde março do ano passado, dos quais 20% foram “remanejados”, na terminologia do governo — ou seja, deixaram os estoques estaduais sem ser usados em pacientes de Covid-19.
Para o ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a distribuição de cloroquina foi prejudicial à condução da pandemia.
— Isso estimulou a automedicação e um comportamento de risco, dada a falsa sensação de segurança — afirma Temporão.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – O que Bolsonaro fez, na verdade, foi um crime. Análise de 28 pesquisas concluiu que hidroxicloroquina está associada a uma maior mortalidade de pacientes com Covid-19. (C.N.)