Carlos Newton
Apesar de o texto ter sido revisado por um grupo de três filólogos, chefiados pelo imortal Celso Cunha, a Constituição de 1988 nasceu recheada de dispositivos contraditórios que até hoje, mais de 32 anos depois, continuam causando confusão. Algumas dessas normas foram criadas devido ao medo de no futuro ser implantada uma nova ditadura militar que perseguisse os políticos de oposição.
Em tradução simultânea, os constituintes fizeram o possível e o impossível para evitar a possibilidade de serem presos, inventaram um sem-número de salvaguardas e dispositivos acautelatórios.
TEXTO ESTUPRADO – Foi assim que os ilustres constituintes acabaram estuprando o texto, ao incluir o inciso LVII do artigo 5º, determinando que ninguém pode ser considerado culpado “antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Na tentativa de evitar que fossem presos em uma nova ditadura, os parlamentares transformaram o Brasil no país mais atrasado do mundo em matéria de Direito Penal. Entre os 193 países da ONU, nenhum outro proíbe prisão após segunda instância, apenas o Brasil…
Esse tipo de erro os três filólogos não poderiam identificar, salvo se fossem juristas de primeira categoria, porque uma coisa é ser dicionarista e conhecer as palavras, outra coisa muito mais específica é analisar juridicamente o alcance dos dispositivos constitucionais.
DÚVIDA NO IMPEACHMENT – Esses textos confusos e contraditórios tornaram a Constituição terreno fértil para que haja interpretações pelos ministros do Supremo, que são individualistas e cada um dá sua peruada – digamos assim, com todo o respeito.
É o caso dos dispositivos sofre afastamento do presidente da República. Vejamos o que determina o artigo 86: “Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”.
Agora, vejam a contradição nesses dois incisos (I e II) do parágrafo 1º:
1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I – nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;
II – nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
RECEBIDA A DENÚNCIA – Vejam a lambança feita pelos constituintes. No caso de crime de responsabilidade, o presidente só é afastado “após a instauração do processo pelo Senado Federal”. Mas nos crimes comuns, é afastado “se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal”.
E o que significa a expressão jurídica “recebida a denúncia”, que os filólogos engoliram? Em tradução simultânea, o recebimento da denúncia pelo Supremo é o ato pelo qual o acusado passa a ser réu no processo, e a Lei 8.038, de 28 de maio de 1990, disciplina essa questão.
No caso de crime comum, a tramitação é a seguinte:
1) É feita a queixa-crime ou o ministro do STF manda abrir inquérito;
2) Transcorre a investigação;
3) Terminada a apuração, o ministro-relator, que funciona como juiz de instrução, faz a denúncia, ou seja, pede a abertura do processo, ou arquivamento;
4) Apresentada a denúncia ao Tribunal,o presidente acusado tem prazo de quinze dias para se defender;
5) o mesmo prazo é dado ao procurador-geral para se manifestar;
6) Após a defesa e parecer do PGR, se o ministro-relator mantiver a decisão de processar o presidente, pedirá marcação de data para que o Tribunal delibere sobre o recebimento ou a rejeição da denúncia.
7) Se a maioria do STF estiver a favor, a denúncia estará recebida e o presidente será afastado por 180 dias, para que a Câmara autorize o STF a processar o mandatário.
É claro que a defesa de Bolsonaro não aceitará o afastamento e o Supremo terá de decifrar esse enigma constitucional.
###
P.S. – Essa esculhambação jurídico-legislativa é algo novo, jamais foi abordada em debates acadêmicos ou na imprensa. Aqui na Tribuna, abrimos o debate com o excelente advogado paulista Marcos Franco, que concorda com a obrigatoriedade de o presidente ser afastado do cargo assim que recebida a denúncia pelo Supremo. Logo voltaremos ao palpitante assunto. (C.N.)