Na rota final da campanha, Bolsonaro retoma o discurso de que há fraude nas eleições e pavimenta o caminho para contestar o resultado em caso de derrota.
Por Carlos Graieb (foto)
Se você aguarda ansiosamente pelo término, neste domingo, de uma campanha vazia de ideias e repleta de carluxos e janones, de violência retórica e baixaria, respire fundo e prepare-se: o terceiro turno das eleições já está encomendado, caso Jair Bolsonaro saia derrotado das urnas por uma margem estreita (e todas as pesquisas sugerem que a margem será exatamente assim, bastante apertada).
Na quarta-feira, 26, o presidente disse em dois momentos que sua candidatura foi prejudicada pela não exibição sistemática de propagandas de rádio, o que teria desequilibrado a disputa em favor de Lula, seu adversário.
Na primeira fala, em cima de um palanque em Minas Gerais, ele acusou o PT e o TSE de terem agido em conluio para prejudicá-lo. Na segunda, uma entrevista coletiva diante do Palácio da Alvorada, Bolsonaro foi mais comedido, mas prometeu ir “até as últimas consequências” no questionamento do caso.
A nova polêmica não significa que as velhas queixas sobre as urnas eletrônicas e a “falta de transparência” na apuração de votos tenham sido deixadas de lado. No último fim de semana, o comentarista político americano Ben Shapiro exibiu em seu programa uma conversa com Bolsonaro, na qual o presidente afirmou que, depois de participarem da fiscalização do primeiro turno, as Forças Armadas lhe teriam comunicado ser “impossível dar um selo de credibilidade” ao processo eleitoral.
Não é a primeira vez que Bolsonaro dá a entender que as Forças Armadas têm críticas ao sistema de votação. Questionados, os militares negam ter feito qualquer relatório sobre o tema. Não há nada de bom nessa ambiguidade – e na maneira como Bolsonaro usa os militares, sem nenhuma cerimônia, como bucha de canhão na sua cruzada política.
Bolsonaro tem armas jurídicas e políticas para prolongar a guerra depois da votação. Ele já começou a usá-las de maneira combinada – a questão é até que ponto ele está disposto a ir em caso de fracasso eleitoral.
O “radiogate” começou na segunda-feira, 24, quando a campanha do presidente protocolou no TSE a denúncia de que rádios do Norte e do Nordeste teriam veiculado 154.000 peças publicitárias de Lula a mais do que de Bolsonaro. O presidente do TSE e ministro do STF Alexandre de Moraes (a besta-fera do bolsonarismo) considerou que as alegações estavam mal embasadas e deu 24 horas para que novas provas e argumentos fossem apresentados.
Dentro do prazo, a equipe de Bolsonaro detalhou o processo tecnológico utilizado para varrer a programação das rádios e verificar se o número de inserções coincidia com o do planejamento oficial. Também encaminhou ao tribunal um arquivo digital onde seria possível constatar, em tese, a “sonegação” da propaganda.
Enquanto isso, no TSE, acontecia a demissão de um servidor diretamente ligado às tarefas de receber as peças eleitorais das campanhas e inseri-las num sistema eletrônico de onde elas podem ser baixadas pelas emissoras de rádio e televisão. Alexandre Gomes Machado, o funcionário demitido, foi à Polícia Federal e registrou um depoimento, afirmando que já em 2018 havia alertado o tribunal sobre falhas na fiscalização e veiculação de propaganda eleitoral.
O discurso enraivecido de Bolsonaro em Minas Gerais, alegando ser vítima de uma conspiração com as digitais do PT e do TSE, aconteceu depois desses dois eventos – a entrega do segundo relatório por seus advogados e a demissão do funcionário do TSE (que Bolsonaro pintou como tentativa de “pôr uma pedra” sobre irregularidades no interior do tribunal).
As peripécias seguintes nesse enredo atribulado foram a divulgação de uma nota pela corte eleitoral e a sentença expedida por Alexandre de Moraes. O TSE disse que Alexandre Gomes Machado havia sido desligado por episódios de assédio moral e negou que ele jamais tivesse alertado seus superiores sobre problemas nos sistemas de distribuição de propaganda. Moraes considerou inconsistente, mais uma vez, o material encaminhado pelo time de Bolsonaro. Mandou arquivar a denúncia, que qualificou de tentativa de “tumultuar as eleições“, e despachou toda a papelada para o inquérito das fake news, que ele mesmo comanda no STF.
Bolsonaro convocou o núcleo de sua campanha e os comandantes das Forças Armadas para uma reunião. O uso de um tom mais contido em seu segundo pronunciamento, no começo da noite, foi decidido nesse encontro. Tratou-se de um recuo tático, para evitar que Bolsonaro pudesse parecer, aos olhos dos eleitores, um candidato já derrotado e desesperado, em busca de uma desculpa para o fracasso. Mas as críticas a Alexandre de Moraes, ao TSE e ao PT foram reiteradas, assim como a mensagem de que “a luta continua” – para começar, com a apresentação de um recurso ao STF.
Crusoé ouviu cinco especialistas em direito eleitoral: o ex-presidente do TSE Carlos Ayres Britto, o presidente da comissão eleitoral da OAB Ricardo Vita Porto, os advogados Rafael Mota, Isabel Mota e André Marsiglia. Existe consenso em torno de algumas ideias.
Primeiro, que fiscalizar a distribuição e a veiculação de propaganda eleitoral não é atribuição do TSE, mas das campanhas políticas, segundo uma resolução de 2019, da Justiça Eleitoral, que disciplina esse tema. “Os partidos ou coligações precisam montar uma estrutura para acompanhar a veiculação. Se perceberem que uma peça não foi exibida, podem pedir a restituição do tempo“, diz Ricardo Porto. “É preciso indicar, além disso, exatamente qual foi a emissora e qual foi o horário em que o problema ocorreu, para que haja a reparação.”
Um segundo consenso é que as reclamações devem ser feitas com a maior rapidez possível – segundo parte da jurisprudência, em no máximo 48 horas, desde que verificada a falta de veiculação. “Segundo um velho adágio, o direito não socorre quem dorme“, diz Rafael Mota. Uma das razões é impedir o represamento de reclamações, um artifício pelo qual uma campanha poderia tentar concentrar um grande volume de propagandas às vésperas da votação. “Há uma jurisprudência bem conhecida do TSE contra o ‘armazenamento tático’ de representações“, diz Isabel Mota (sem parentesco com Rafael).
Se a intenção de Bolsonaro era reaver o tempo de propaganda de que supostamente o privaram, a ferramenta jurídica que sua campanha utilizou foge completamente aos parâmetros já bem estabelecidos na Justiça eleitoral. Ainda que ele recorra ao STF, como prometeu fazer, suas chances de vencer não parecem muito boas – por razões técnicas, e não porque ele passou o mandato inteiro guerreando com a corte.
Mas, e se o propósito era revelar uma fraude? “Propaganda não ser exibida é algo mais comum do que se imagina“, diz André Marsiglia. “Isso pode acontecer por diversas razões, como erros e problemas técnicos, inclusive da equipe do próprio candidato. Não se pode partir do princípio de que houve uma conspiração, mesmo diante de um número elevado de propagandas não veiculadas. Para uma alegação desse tipo prosperar, é preciso que os indícios de fraude sejam muito fortes. Caso contrário, surgiria uma insegurança enorme no nosso sistema político.”
Segundo os juristas, se o presidente deseja argumentar que houve um conluio contra a sua candidatura, a denúncia apresentada ao TSE também não foi a ferramenta adequada. Ele tem dois tipos de ação à sua disposição: a Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) e a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME).
A primeira pode ser utilizada durante o processo eleitoral para investigar, justamente, condutas que possam ter criado um desequilíbrio entre candidatos. A segunda está prevista no artigo 14 da Constituição e pode ser ajuizada em até quinze dias depois da diplomação do candidato eleito, “com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude“. É um remédio que Bolsonaro poderá usar se perder, de fato, as eleições.
O arquivamento sumário do processo do “radiogate” por Alexandre de Moraes não causou surpresa entre os especialistas do direito eleitoral. E poderia ter acabado aí. O ministro, no entanto, tomou uma medida mais drástica: decidiu incluir a denúncia no famigerado (e interminável) inquérito das fake news. Pode-se perguntar se isso não deu a Bolsonaro exatamente o que ele queria: a possibilidade de se apresentar, mais uma vez, como vítima de uma “sistema” que só pensa em prejudicá-lo.
Crusoé nunca acreditou na possibilidade de um golpe de estado conduzido por Bolsonaro, por várias razões: porque o resto do mundo trataria de isolar e penalizar o Brasil imediatamente; porque o país está literalmente rachado ao meio e nem direita, nem esquerda, predominam; porque os militares da ativa já deram inúmeros sinais de não estarem dispostos a participar de uma aventura desse tipo. A possibilidade de um terceiro turno, contudo, é real. Inclusive com agitação nas ruas, como houve várias vezes nos últimos anos, pedindo o fechamento de tribunais, intervenção das Forças Armadas, um novo AI-5 e outras feitiçarias.
Respire fundo. Bolsonaro não abandonou o discurso de que só aceitará o resultado de eleições “limpas e transparentes” – sendo que ele dá às duas palavras um sentido próprio, que não tem nada a ver com o senso comum. Se ele perder, o estado febril em que o Brasil se encontra pode se estender ainda por um bom tempo.
PS: E o PT? O partido que comprou apoio político com o mensalão e o petrolão não tentaria recorrer ao tapetão caso perca no domingo? Dado o estágio de degradação do ambiente democrático, nada é impossível. Mas é fato que o partido, em nenhum momento da campanha ou da pré-campanha, procurou deslegitimar as urnas ou a Justiça Eleitoral. Se o fizer depois de domingo, será uma surpresa – ao passo que uma contestação desse tipo, vinda de Bolsonaro, será praticamente o cumprimento de uma promessa.
Revista Crusoé