A polarização é primitiva. Divide o mundo entre o bem e o mal, as situações pessoais entre ‘gosto’ e ‘odeio’
Por Carlos Alberto Sardenberg (foto)
Foi positivo que tenha havido um segundo turno. Mesmo sem grandes novas alianças partidárias, Lula e Bolsonaro tiveram de ampliar repertório, elencos de apoio e foram mais expostos.
Se o objetivo de um e outro era sair da respectiva bolha, Lula saiu-se melhor. Obteve apoios importantes, que vieram sem cobrança e com uma posição que ajuda na busca de eleitores indecisos. Ajuda a escapar da polarização.
Sim, porque, se o embate se dá entre o bem e o mal absolutos, isso mantém no jogo apenas os fiéis de cada lado. Mas o Brasil seria isso? Metade lulista e metade bolsonarista?
Simone Tebet, cujo crescimento como figura nacional até se reforçou após o primeiro turno, respondeu. Não é lulista, não apoia o programa histórico do PT, mas vota no ex-presidente por entender que esse voto preserva a democracia. Não é apenas um voto anti-Bolsonaro, mas a favor de algo mais.
A polarização, numa psicanálise de leigos, é primitiva. Divide o mundo entre o bem e o mal, as situações pessoais entre “gosto” e “odeio”. Estamos vendo muito desse primitivismo. A civilização é mais complexa que isso. O diabo, às vezes, pode não ser tão diabólico.
Pensando nisso, me veio uma memória de 1982, na campanha de Franco Montoro para governador de São Paulo. Lá pelas tantas, ficou claro que Montoro ganharia de lavada. Consequência: começaram a chover apoios. Um belo dia, Montoro recebeu a adesão entusiasmada de líderes sindicais que haviam passado muitos anos convivendo com o regime militar. Terminada a cerimônia, um grupo de jovens do MDB foi se queixar com o chefe da campanha, Chopin Tavares de Lima. Aqueles caras eram pelegos. Resposta de Montoro: se a gente dividir o mundo entre pelegos e não pelegos, eles certamente caem no grupo dos pelegos. Mas o mundo não se divide assim.
Fica a dica.
Lula recebeu apoios de não petistas e mesmo de não petistas históricos, a começar por Alckmin. É verdade que este tem interesse pessoal no caso, mas enfim... E FH pediu votos para Lula —e pronto.
Certamente por isso, Lula não entregou o que muitos esperavam: uma declaração firme por uma política econômica responsável, algum mea-culpa pela corrupção e a promessa inequívoca de um governo além da dominância petista. Na carta divulgada nesta semana, cabe muita coisa, inclusive a volta à política econômica chamada de nova matriz — que conduziu o país à combinação de recessão profunda com inflação elevada. Promessas de campanha apontam nessa direção, de gasto público irresponsável.
Ao mesmo tempo, Henrique Meirelles tornou-se uma espécie de porta-voz econômico, garantindo que haverá uma gestão comprometida com o equilíbrio das contas públicas. Cita como referência os oito anos em que trabalhou com Lula como presidente do Banco Central. Não conta, entretanto, que, no segundo mandato de Lula, o então ministro Mantega tentou e quase conseguiu derrubar Meirelles para colocar no seu lugar um neodesenvolvimentista.
Essa tensão, entre petistas e não petistas, já aparece claramente nas movimentações em torno da campanha de Lula e nas “listas” de ministros, isso mesmo, que já aparecem aqui e ali. Considerando que a situação econômica é bem difícil — déficit primário elevado, BC mantendo juros reais altos —, os dilemas de Lula, se eleito, tornam-se ainda mais complexos. Vai governar tendo recebido o “não” de quase metade do país. Precisa ir muito além de sua turma.
Do outro lado, Bolsonaro acumulou desastres. A denúncia da última semana — segundo a qual emissoras de rádio do Nordeste estariam transmitindo mais propaganda de Lula do que de Bolsonaro — revelou-se ridícula. Uma auditoria da própria campanha bolsonarista colocava nessa pretensa manobra oito — oito! — emissoras, num universo de mais de 5 mil rádios em atividade. Se é o mesmo pessoal que está armando o golpe... então é a turma das Organizações Tabajara. Lembram-se? “Casseta & Planeta”.
Mas toda cautela vale. Se não é propriamente um ás do planejamento, o presidente é impulsivo e sem limites.
O Globo