Marcus André Melo
Folha
Em tese, o novo governo Lula poderia contingenciar o orçamento secreto, mas a questão é se terá condições políticas de fazer isso. Como se sabe, o “orçamento secreto” é produto da metamorfose radical que o governo Bolsonaro sofreu no segundo ano do mandato, e que decorreu de uma dupla ameaça: o espectro do impeachment e da paralisia decisória do governo.
A encruzilhada crítica ocorreu entre abril e maio de 2020. É nela que o presidencialismo plebiscitário de Bolsonaro se transmuda — sem que a transformação se complete — em presidencialismo de coalizão. Nela o STF, então sob ataques, participou do “pacto”.
A crônica desta transformação pode ser recuperada pela voz dos protagonistas. Luiz Eduardo Ramos, à frente da Secretaria de Governo, em junho de 2020, revelou o isolamento da gestão de Bolsonaro: “Até abril, eu nunca tinha conseguido reunir todos os líderes de partidos no Palácio do Planalto. Eles se encontravam na casa do Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Agora mudou”. E Toffoli declarou em agosto: “O ‘pacto’ funcionou”.
BASE ALIADA – A formação da base parlamentar de Bolsonaro ancorou-se em partidos, não indivíduos: “Temos um quadro de quem vota e de quem não vota com o governo. Quer fazer parte do governo? Tem de fazer parte do governo de fato. Hoje eu tenho esse controle. Sei exatamente o nível de fidelidade dos parlamentares”, disse o general-ministro.
O que mudou? “Antes, um parlamentar vinha aqui sozinho e pleiteava um cargo. Agora, a negociação é com os partidos”. E exemplificava: “O senador Ciro Nogueira, presidente do PP, tem 60 votos. Por isso, ele tem espaço no governo com o FNDE” (fundo educacional).
Recentemente o ministro Luiz Eduardo Ramos voltou a descrever o processo e seus resultados: “Fiz uma reunião com os líderes. E falei: ‘Os senhores querem participar do governo?’ Com isso, fomos montando a base. A partir daí, a coisa começou a fluir, as pautas começaram a ser aprovadas”.
SEM INTERFERÊNCIA – “A fidelidade é uma responsabilidade dos partidos”; a gestão do orçamento também. A inédita superdelegação de autoridade orçamentária é candidamente descrita: “Quando ia a relação dos parlamentares para o governo, ela só passava pela Secretaria de Governo para sabermos quem eram os deputados. Nós não tínhamos interferência alguma”. Assim, o Executivo não só detém esta informação como mantém o poder de contingenciar.
Além da impositividade das emendas individuais e de bancada, aprovadas em 2015 e 2017, a gestão das emendas de relator também é delegada aos partidos. Tragédia dos comuns, como já alertei.
Em tese, Lula poderia contingenciar as emendas. A questão-chave é se o Executivo terá condições políticas de fazê-lo. A coligação liderada pelo PT detém apenas 23% da Câmara. Assim, terá de negociar com partidos anabolizados por fundos públicos e pelo novo poder sobre o orçamento.