O Estado de bem-estar social, que fora fundamental para suplantar o chamado “socialismo real”, entrou em crise e a democracia tem dificuldades de acompanhar as mudanças de uma economia globalizada
Por Luiz Carlos Azedo (foto)
Quando Alexander Hamilton exortou os norte-americanos a decidirem se “as sociedades humanas são mesmo capazes de constituir um bom governo, com base na reflexão e na escolha, ou se estão condenados para sempre a ter organizações políticas que são fruto do acidente e da força” (O Federalista, nº 1), em 1787, no debate que levou à consolidação a Constituição dos Estados Unidos, traçou o curso da linha divisória que separa o Ocidente democrático do resto do mundo. Os países que foram capazes de seguir esse caminho constituíram bons governos e foram adiante, ampliando consideravelmente a sua influência mundial; os que tomaram outro rumo, como a Alemanha nazista e, mais recentemente, a antiga União Soviética, amargaram o declínio, a disfunção e/ou o colapso.
Entretanto, depois da débâcle dos regimes comunistas do leste europeu, as democracias do Ocidente começaram a enfrentar uma crise de representação sem precedentes, provocada pela revolução tecnológica que elas próprias protagonizaram e as dificuldades de sustentar um modelo de Estado que se baseava muito mais no fabianismo, uma doutrina liberal-socialista, do que no Leviatã de Thomas Hobbes, o Estado liberal clássico. O Estado de bem-estar social, que fora fundamental para suplantar o chamado “socialismo real”, entrou em crise. Com isso, a democracia representativa passou a ter dificuldades para acompanhar as mudanças de uma economia globalizada.
É aí que entram em cena um pequeno país asiático e um gigante de dimensões continentais. A pequena Cingapura, que fora governada por Lee Kuan Yew por 30 anos e hoje é comandada por seu filho mais velho, Lee Hsien Loong, e a China de Deng Hisiao Ping, hoje liderada por Xi Jinping, operam um processo de modernização com resultados surpreendentes, a partir de governos autoritários, que passou a ser referência para diversos países no mundo. Inicia-se, assim, uma corrida para reinventar o Estado, na qual muitas vezes a democracia e o Estado de bem-estar social estão de mãos dadas numa rota suicida, por causa do populismo e do inchaço dos governos; em outras, em confronto aberto, no Estado mínimo, igualmente perigoso, devido às desigualdades.
Na China, os gestores buscam inspiração no Ocidente, miram o Vale do Silício, nos Estados Unidos, para reinventar o capitalismo; porém, olham para Cingapura na hora do “aggiornamento” do seu governo. A cidade-estado adota o sistema Westminster de governo unicameral, ou seja, é uma república parlamentar. O Partido de Ação Popular (PAP) ganhou todas as eleições desde a concessão britânica de autonomia interna em 1959. O país tem o terceiro maior poder de compra per capita do mundo, é um dos mais ricos do planeta.
Fim da História
Liderada pelos Estados Unidos, desde o colapso do comunismo europeu, a ideia hegemônica no Ocidente é de que a democracia é um credo universal, basta extirpar a tirania para que se enraíze; e que democracia e capitalismo são siameses, a livre escolha de uma parte não existe sem a da outra. Essas são as premissas básicas do famoso ensaio O fim da História, de Francis Fukuyama, o filósofo e economista norte-americano.
Democracia liberal e capitalismo, porém, não têm uma relação automática, e a equação capitalismo, autodeterminação e globalização não é de fácil solução. Mesmo nos Estados Unidos e na Europa, a democracia está sendo posta à prova por forças autoritárias e “iliberais”, que buscam a modernização conservadora. Não à toa o fantasma republicano de Donald Trump ronda o governo do democrata Joe Biden.
Na corrida entre governos democráticos e autoritários para reinventar o Estado e modernizar a economia, entre os quais algumas monarquias sanguinárias aliadas aos Estados Unidos, destacam-se a emergência da China, como segunda maior potência econômica do planeta, e a ascensão da Alemanha e da França como líderes de uma Europa Ocidental economicamente unificada. A resposta de Donald Trump nos Estados Unidos fora iniciar uma guerra comercial com o gigante asiático, ao mesmo tempo em que buscava e estimulava a adoção de um modelo político “iliberal” para acelerar o processo de modernização no Ocidente. Esse curso foi interrompido pela vitória de Joe Biden, que trouxe a maior potência econômica e militar do planeta para o eixo da reafirmação de sua hegemonia mundial, aliada à Inglaterra no Atlântico, e à Austrália, ao Japão e à Índia no Pacífico, num pacto militar para isolar a China.
O resultado foi a reaproximação entre a Rússia, que recrudesceu sua doutrina geopolítica ao invadir a Ucrânia, e a China, empenhada em levar a Nova Rota da Seda ao coração da Europa. O confronto entre Ocidente e Oriente está novamente instalado. No lugar do mundo globalizado e multipolar, que se desenhava a partir das disputas comerciais, estabeleceu-se uma nova bipolaridade, que se sustenta no equilíbrio estratégico-militar dessas potências nucleares e tem como divisor de águas a narrativa da democracia como modelo de vocação universal, como exortou Hamilton.
Correio Braziliense