Por Miguel de Almeida (foto)
Vivemos o tempo dos homens ocos, como lá atrás decretou T.S. Eliot. Também o aguçamento das mentiras, na visão de Marcel Proust ao ler as falsas notícias de vitórias francesas na Primeira Guerra Mundial. Em fuga das armadilhas fáceis das generalizações, Thomas Mann discordava de quem colocava o nazismo em igual patamar do comunismo.
— O nazismo é apenas o niilismo diabólico — teria declarado em 1949, alertando ainda que não era comunista.
Os três escritores passaram por guerras — Proust apenas pela Primeira Guerra (morreu em 1922). Já morando em Londres, Eliot, que era americano, permaneceu como professor e, em seu posto bancário, sem muitos percalços ao longo dos dois conflitos mundiais, somente decepcionado com a maldade humana. Basta ler “A terra desolada” e escutar seu mergulho no desencanto.
Mann, dos três, foi quem mais sentiu na pele os dramas de seu tempo. Para quem hoje joga a toalha diante da bozofrenia e da Covid-19, os desterros do escritor alemão, cuja mãe, Júlia, era brasileira, deveriam servir de paralelo.
Com uma homossexualidade sublimada, para desalento de seu filho Klaus, Thomas Mann, Nobel de Literatura em 1929, sentiu o cheiro do demônio já em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder. Casado com uma judia, tratou de se mudar para a Suíça. Com o avanço das tropas nazistas na Europa, partiu para os Estados Unidos, onde se tornou um dos intelectuais públicos mais ativos e heroicos na luta contra Hitler.
Após a guerra, Mann, lenda viva da melhor intelectualidade, passou a ser perseguido pelo macarthismo — foi visto como comunista por ser um militante da paz. Ele, um rematado humanista, capaz de raciocinar em desafio aos dogmas políticos, resolveu deixar aquela loucura anticomunista e voltou a morar na Suíça, pouco depois do suicídio de seu filho Klaus Mann, também escritor e homossexual assumido. Se recusaria a permanecer muitos dias na Alemanha, por vergonha e inconformidade com o apoio de seus compatriotas ao nazismo.
Um livro como “The magician: a novel”, do escritor irlandês Colm Tóibín, espécie de biografia romanceada da vida de Mann, ao enveredar por seu diário e cartas pessoais, escande outro de seus dramas — a homossexualidade sublimada (definição de seu filho Klaus).
Era um tempo em que a orientação sexual fora do papai e mamãe dava cadeia. Proust morria de medo de como interpretariam o herói ambíguo de “Em busca do tempo perdido”. A França dele parecia ser mais tolerante que a Inglaterra, onde Oscar Wilde foi condenado por sodomia. Depois de cumprir sua pena, foi em Paris que Wilde passou seus últimos anos.
(Apenas em meados de 1960 a homossexualidade deixou de ser crime na Inglaterra dos Beatles e David Bowie.)
Perseguido pelo nazismo e pelo macarthismo, mas sem disposição de enfrentar mais essa pelota, intolerável mesmo para muitos de seus amigos, o alemão Thomas Mann fez da literatura o bunker confessional de sua sexualidade. “Morte em Veneza” explode o desejo entre um jovem efebo (baseado num personagem real) e um famoso e premiado escritor mais velho (alter ego de Mann). Visconti, ao filmar a obra em 1971, carregou mais na tensão sexual entre os dois amantes — vale dizer, ainda um escândalo naquela época.
A desinformação das redes sociais, reprodução preguiçosa do que foram os programas das rádios AM na década de 1980, sob a voz dos idiotas, teima em tirar de perspectiva e nivelar as atrocidades. Nazismo e comunismo não se assemelham em suas desumanidades. Lula não é comunista (ele é sindicalista), Putin (ao menos até agora) não é Hitler, e Bozo nem sequer chega a ser um Plínio Salgado, já que o integralista não era barrigudo e dominava a sintaxe.
Os tempos da alta conectividade sugerem que a comunicação se tornou apenas mais fácil, porém superficial e ainda mais manipulável. A era dos extremos enfrentada por Thomas Mann e T.S. Eliot recebeu em troca obras como “A montanha mágica” e “A terra desolada” ou “Guernica”, de Pablo Picasso, que também enfrentou duas guerras mundiais.
No Ano III de Bozo, até o momento, só se anotam a bunda de Anitta e o barulho pelo cancelamento de “Com açúcar, com afeto”. Pois é.
O Globo