Foto: Pedro França/Arquivo/Agência Senado
Congresso Nacional02 de janeiro de 2022 | 07:12De um ex-integrante da Lava Jato a uma fiscal aposentada que foi chamada por um delator de “rainha da corrupção”, defesas têm proposto a reversão de PADs (processos administrativos disciplinares) de seus clientes com base na aplicação retroativa da nova Lei de Improbidade Administrativa.
Essas ações disciplinares podem resultar em sanções como a demissão ou a perda da aposentadoria e são reguladas por legislação específica.
No entanto, há entendimento entre advogados de que o previsto na lei de improbidade pode afetar esses procedimentos. Além disso, normas mais benéficas podem retroagir para favorecer acusados.
Como a nova Lei de Improbidade afrouxa normas da legislação anterior, mesmo antes da sanção do presidente Jair Bolsonaro, em 26 de outubro, defesas já anteviam a possibilidade de recursos em diversos processos.
Essa era uma das possibilidades estudadas pela defesa do procurador da República Diogo Castor de Mattos, ex-integrante da força-tarefa da Lava Jato do Paraná, que teve a pena de demissão aplicada pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).
Castor bancou, em Curitiba, um outdoor em homenagem à operação, e por 6 votos a 5, o plenário do CNMP considerou que o procurador cometeu ato de improbidade administrativa.
Ele foi membro da antiga força-tarefa de Curitiba e cedeu cerca de R$ 4.000 em recursos próprios para a propaganda colocada na saída do aeroporto da capital paranaense no início de 2019, por ocasião dos cinco anos da investigação.
Porém, deve haver uma ação de perda de cargo para que haja essa demissão. A defesa vinha argumentando que a nova Lei de Improbidade Administrativa menciona proibição a autopromoções que usem “recursos do erário”, e que ela pode ser aplicada retroativamente ao caso do procurador.
No Tribunal de Justiça de São Paulo, uma funcionária sob suspeita de enriquecimento ilícito tem tentado, ainda sem sucesso, considerar os efeitos da nova lei tanto em uma ação civil pública em que é acusada de improbidade quanto em PAD que tenta cassar sua aposentadoria.
Ideli Dalva Ferrari, que era fiscal de rendas da Secretaria da Fazenda e se aposentou em 2016, é acusada pelo Ministério Público de São Paulo de improbidade em uma ação civil apresentada em 2018 pelo promotor Marcelo Milani.
Embora Ideli tivesse uma remuneração de aproximadamente R$ 13 mil antes da aposentadoria, a Promotoria afirma que ela e familiares compraram 44 imóveis e movimentaram R$ 10 milhões, sem comprovar a origem do dinheiro. Parte das transações usou dinheiro em espécie.
Além dessa ação civil, Ideli foi mencionada na delação de Ananias José do Nascimento, um ex-agente fiscal de rendas envolvido na máfia do ICMS —esquema de pagamentos de propinas de empresas a agentes públicos para evitar cobranças tributárias.
Segundo Ananias, Ideli era conhecida como “rainha da corrupção” na Secretaria da Fazenda.
O advogado de Ideli Ferreira, Aristides Zacarelli Neto, afirma que sua cliente não cometeu qualquer irregularidade.
“O caso dela é emblemático, porque não obstante ela ter o apelido de ‘rainha da corrupção’, é importante lembrar que não há nenhuma ação penal contra ela. Ao contrário, a investigação feita pelo Ministério Público foi arquivada”, afirma Zacarelli.
Na nova lei de improbidade, foi eliminada a possibilidade de sanção por irregularidades “culposas” —agora será preciso a acusação comprovar que houve dolo (quando há intenção ou se assume o risco de cometer o ilícito).
É com base principalmente nesse argumento, de que a acusação não apontou dolo, que a defesa de Ideli tem tentado anular suas ações.
“A gente entende que a nova lei se aplica sim ao caso dela, seja no âmbito do processo administrativo, seja no âmbito da própria ação civil pública. O que a gente pretende fazer é utilizar todos os argumentos legais para que seja aplicada a nova legislação”, diz o advogado.
“Ela tem um patrimônio que foi adquirido antes mesmo de ela entrar na Secretaria da Fazenda e o patrimônio dela é absolutamente compatível com os rendimentos que ela recebeu e ainda recebe”, acrescenta. “Isso está mais do que demonstrado nos autos. Então não há dolo. Dolo do quê? De ela ter amealhado patrimônio?”
O entendimento dele, porém, é diferente do exposto pelo desembargador Paulo Barcellos Gatti em decisão de recurso apresentado pela defesa.
“O ‘descompasso’ entre a evolução patrimonial do servidor e a remuneração por ele percebida no cargo permanece qualificado como ato passível de caracterizar improbidade por enriquecimento ilícito”, afirmou.
“Imprescindível considerar que a Administração Pública em nenhum momento imputou à ex-servidora a prática de atos destituídos do dever objetivo de cuidado [culpa] “, disse o magistrado.
“Ao revés, destacou-se, ao longo de toda a apuração preliminar, a voluntariedade e a consciência (dolo elemento subjetivo do tipo) da ex-servidora na acumulação de patrimônio pessoal, o qual aparenta estar desalinhado da capacidade proporcionada por seus ganhos habituais, podendo ter sido fruto direto de vantagens indevidas percebidas em razão do exercício da função pública”.
A retroatividade da nova lei de improbidade tem sido motivo de diversas discussões. A Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal aprovou uma nota técnica orientando os procuradores que, em seu entendimento, a nova lei de improbidade não é retroativa.
Para o Ministério Público, a retroatividade dessas ações vai de encontro à Constituição.
Advogados procurados pela reportagem têm uma visão diferente.
“As novas regras processuais se aplicam de imediato e as novas regras de direito material mais benéficas se submetem ao princípio da retroatividade em benefício do acusado ou infrator”, afirma a advogada Cecilia Mello, que foi juíza do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região).
“Não me parece haver margem para discussão diante das disposições constitucionais que regem o tema e do próprio texto da lei.”
O advogado Eduardo Alexandre Guimarães diz que a condenação por improbidade tem natureza jurídica de pena e tem sido tratada pela doutrina mais moderna, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, como um subsistema do direito penal.
“Sendo uma norma verdadeiramente penal, a lei de improbidade administrativa deve retroagir para beneficiar o agente acusado”, afirma.
O QUE MUDA NA LEI
Descrição dos atos de improbidade
Como era O texto da lei era genérico sobre as situações que podem configurar improbidade, deixando margem para que até decisões e erros administrativos sejam enquadrados na legislação
Como ficou O novo texto traz definições mais precisas sobre as hipóteses de improbidade e prevê que não configura improbidade a ação ou omissão decorrente da divergência interpretativa da lei
Forma culposa de improbidade
Como era A lei estabelecia que atos culposos, em que houve imprudência, negligência ou imperícia podem ser objeto de punição
Como ficou Novo texto cita apenas a modalidade dolosa (situações nas quais houve intenção de praticar a conduta prejudicial à administração). A medida deve promover redução significativa nas punições, pois é muito mais difícil apresentar à Justiça provas de que o agente público agiu conscientemente para violar a lei
Titular da ação
Como era O Ministério Público e outros órgão públicos, como a AGU (Advocacia-Geral da União) e as procuradorias municipais podiam apresentar as ações de improbidade à Justiça
Como ficou O Ministério Público terá exclusividade para a propositura das ações