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segunda-feira, janeiro 03, 2022

A tragédia na Bahia: algumas reflexões jurídico-políticas

 


Por Alex Agra Ramos - mestrando em Ciência Política pela UFBA

 

Pode até ser que as chuvas sejam consideradas um episódio de caso fortuito (sem querer entrar em questões doutrinárias aqui, mas definindo caso fortuito como evento da natureza de caráter imprevisível), não vejo impossibilidade de responsabilização em alguns aspectos. Seria necessário outro espaço pra falar sobre isso, então vou resumir em alguns pontos. As lacunas podem ser preenchidas em debate futuro.

A primeira questão é que cientificamente a imprevisibilidade do objeto não é inquestionável não. Mas como essa cientificidade é de certa forma subjetiva e não importa ao Direito, façamos primeiro uma consideração extrajurídica: o aumento da financeirização da economia, que levou todo o setor industrial para a esfera especulativa e oportunizou, não sem bastante incentivo de todos os governos que vieram depois, a reprimarização da economia, somado ao abandono do projeto nacional de mudança do padrão enérgico da energia hidroelétrica pra energia nuclear vêm cobrando fortes preços. Precisamente porque quanto maior a crise no setor externo da economia, maior a necessidade de expansão da produção do agronegócio, pra inclusive compensar a deterioração dos termos de troca. Isso passa pela expansão da fronteira agrícola que, por óbvio, passa pela extensão do principal alvo dessa extensão: a região do MATOPIBA. Apesar de captar até então a região oeste da Bahia, o MATOPIBA se expande pra o sul da Bahia sem novidades há um bom tempo e a exploração tanto do agronegócio quanto a exploração mineral se encontram entre Bahia e Minas Gerais há um certo tempo.

Somado a isso, existem as hidrelétricas da região, que alteram os cursos dos rios e as mineradoras que, optando por alteamentos à montante, ou seja, onde o alteamento da barragem por ser muito mais econômico, é feito em cima do próprio resíduo da barragem, sujeita a população à perigo que não é inevitável, considerando formas mais seguras (porém, mais caras) de proteger as pessoas são deixadas de lado por uma questão de taxa de lucro.

Tudo isso tem promovido um resultado que não é novidade: fortes alterações climáticas no Brasil. Na região da Bahia essas alterações têm sido gritantes e o subdesenvolvimento da região tem tudo a ver com a tal MATOPIBA e a expansão da fronteira agrícola. Aliás, poderia ser um tema à parte só a ligação entre agronegócio e mineração e o subdesenvolvimento da região. Nesse sentido, seguindo o fio, tais alterações climáticas têm sido cada vez mais recorrentes e embora muitas vezes o MOMENTO de sua ocorrência seja imprevisível, o caso é que o FATO em si não é. Trata-se evento certo, mas impreciso quanto ao momento.

Assim entra a discussão sobre a responsabilização do Poder Público. Seria o caso de investigar em quais áreas qual poder público pode ser responsabilizado, que não é a ideia desse pequeno texto aqui. A Constituição brasileira, através do seu artigo 37, parágrafo 6, estabelece que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Entra a questão aí do caso fortuito ou força maior. Embora a consideração que fiz de forma acima talvez não seja suficiente pra a atribuição dessa responsabilidade, o resultado produzido é sim suficiente. E explico a razão de acreditar nisso. Para caracterização da responsabilidade exige-se a fixação do nexo causal (causa e efeito) entre o dano produzido e a atividade funcional desempenhada pelo agente estatal. Aí é que está: a conexão entre o dano e a atividade desempenhada pelo agente.

Antes de tudo, quero dizer que qualquer aplicação punitivista e extensiva da teoria do domínio do fato está sendo rejeitada aqui, tanto na sua forma ampliativa (levando o domínio do fato a quem não possui qualquer vínculo mental com o resultado) quanto na sua forma reduzida (restringindo o domínio do fato aos "peixes pequenos"). Aliás, por uma questão de fidelidade doutrinária, que acredito tenho aprendido bem com Greco e Roxin, sequer acredito que essa teoria se aplique no caso, mas estou já me antecipando às forças punitivas que buscaram encontrar nela as formas de responsabilização. Repito: seria uma inovação de péssima qualidade aplicar essa teoria ao caso, então nem inventem.

Até onde conheço, e me avisem se estiver errado porque assumo sempre essa possibilidade, nos casos de enchente a responsabilidade é objetiva, ou seja, as vítimas não precisam provar a culpa do Poder Público, apenas o fato (enchente) e os danos. Mas isso no caso específico das enchentes. Quero tratar da soma das tragédias (por isso seria importante fazê-lo em um debate separando caso a caso ou em um outro espaço, mas busco só uma reflexão sobre o tema.

A questão está relacionada a dois elementos importantes:

1 - A tecnologia e o desenvolvimento técnico da área da construção civil, que deveriam ser garantidos nos planejamentos de moradia das cidades e os planos de emergência das prefeituras, permitem a tomada de medidas preventivas EFICIENTES no caso em questão? Seja para evitar o dano ou repará-lo? Seria o caso de analisar as duas hipóteses.

2 - Aqui está o elemento fundamental de toda a minha argumentação: foi respeitado o princípio da proibição da proteção deficiente?

No caso da resposta para o primeiro item ser negativa, penso ser absolutamente clara a possibilidade de atribuição de responsabilidade civil por meio de Inquérito Civil instaurado pelo Ministério Público para apurar a devida medida de responsabilidade do Poder Público, realizando posteriormente uma Ação Civil Pública. Para isso, sendo sincero, seria necessário dar ao Ministério Público que parece que não há interesse em oferecer, ao menos não quando se trata de questão ambiental, habitacional ou urbana. Aparentemente, o Ministério Público só é "bonito" para crimes de colarinho branco e para crimes contra a vida, e olhe lá.

Paralelamente, a resposta para o item 2 ser negativa, acredito que aí está o nexo causal que se busca, supracitado.

O princípio da proibição da proteção deficiente (Untermassverbot), que em tese deveria ser muito usado no Direito Penal, diz respeito à atuação positiva e não deficiente do Poder Estatal. Isso porque há uma compreensão de que os direitos fundamentais não se limitam a impor obrigação negativa – abstenção de violação – ao Estado. Os direitos fundamentais, especialmente os de segunda geração pra frente, impõem obrigações positivas, já que se compreende que o Estado tem dever de proteger os direitos fundamentais, não somente de não os violar.

Aí está o nexo causal que figurava como pré-requisito, era dever estatal proteger os direitos fundamentais que foram violados: o direito à vida (18 mortos até agora), proteção do meio ambiente (enchentes e rompimento da barragem de Itambé), direito à moradia (destruição e alagamento interno de diversas casas e pessoas desabrigadas), direito à saúde (doenças desenvolvidas em decorrência das enchentes) e por aí vai.

Enfim, posso estar errado em alguns aspectos dessa reflexão, talvez em todos, mas não poderia deixar de fazê-la.

Wesley Sousa

https://acervocriticobr.blogspot.com/2022/01/a-tragedia-na-bahia-algumas-reflexoes.html?m=1

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