Ruan de Sousa Gabriel
O Globo
O historiador escocês Niall Ferguson, estudioso das idas e vindas da economia, aconselha o Brasil a não arrumar confusão com a China e retomar a tradição dos “países não alinhados”, que prosperou na Guerra Fria, quando algumas nações preferiram não se aproximar muito nem dos Estados Unidos nem da União Soviética. Nesta “nova guerra fria”, o Brasil ganha mais ao apostar na neutralidade.
Ferguson é lembrado como um dos intelectuais que previram a quebradeira de 2008 no livro “A ascensão do dinheiro”, lançado na época da falência do Lehman Brothers. No final de 2020, chegou ao Brasil uma nova edição do livro, pela Crítica (selo da Planeta), com dois capítulos extras: um sobre as relações entre EUA e China pós-crise e outro sobre o Brexit.
GOVERNOS TECNOCRATAS – No segundo semestre, ele lança por aqui “Catástrofe”, no qual pretende mostrar por que alguns países lidam com desastres melhor do que outros. Em entrevista ao O Globo, por Zoom, Ferguson disse que a pandemia deve trazer de volta os governos tecnocratas e que os estímulos implementados para ajudar a economia a enfrentar o vírus não devem ser estendidos.
Apesar de contrário à independência escocesa, Ferguson pensa que talvez seja hora de seus conterrâneos se lembrarem de como era a vida sem a Inglaterra.
Trump abusava da retórica anti-China, e seu governo foi marcado por essa tensão. O que esperar das relações China-EUA com Joe Biden?
Membros do Conselho de Segurança Nacional de Biden, como Jack Sullivan e Kurt Campbell, mudaram de opinião desde que participaram do governo Obama e afirmaram publicamente que a política de integrar a China ao sistema global esperando a liberalização do regime falhou. Com Trump, os EUA adotaram uma estratégia de rivalidade com a China. Mike Pompeo [ex-secretário de Estado]chamou a repressão aos uigures de genocídio. Em relação à China, o governo Biden será marcado por continuidade em relação a Trump, ainda que haja algumas mudanças, e não vai lembrar em nada a era Obama.
O presidente Jair Bolsonaro tentou copiar os EUA de Trump na retórica anti-China, o que já causou embaraços diplomáticos. Com Trump fora, o Brasil deve tentar reparar os laços com a China ou se aproximar dos EUA?
A situação do Brasil é típica de todos os países que têm laços comerciais com a China, mas se orientam politicamente pelos EUA. Latino-americanos, asiáticos e africanos podem recuperar a tradição dos países não alinhados da Guerra Fria. O Brasil não ganha nada sendo hostil à China e, diferentemente da Coreia do Sul, não depende dos EUA para sua segurança nacional. Não é difícil para o Brasil ser um país não alinhado nesta nova guerra fria, porque não precisa ser tão próximo dos EUA para garantir sucesso econômico e estabilidade política.
O senhor escreveu que a crise de 2008 beneficiou politicamente os populistas. A pandemia dará votos a quais forças políticas?
Em 2017, escrevi que a meia-vida do populismo era curta. É muito difícil para os populistas entregarem o que prometem. As consequências políticas da pandemia são complexas. Ela reforça o argumento do populismo de direita sobre a importância das fronteiras e os riscos da migração em larga escala. No entanto, os populistas já estavam se saindo mal antes da pandemia, e governos tecnocratas, como o de Angela Merkel, na Alemanha, lidaram melhor com a crise. O eleitor agora vai premiar a competência. E populistas não são muito competentes. As habilidades necessárias para inflamar uma multidão são diferentes das necessárias para lidar com o coronavírus. Populistas perderam o debate da saúde pública. Ficaram com cara de bobos falando de hidroxicloroquina. Em 2016, num dos debates do Brexit, Michel Gove [político conservador] disse que todo mundo estava cheio dos especialistas. Bem-vindos de volta, especialistas! Precisamos de vocês.
A pandemia obrigou os Estados a gastarem mais e implementarem políticas de transferência de renda. São mudanças permanentes?
São medidas emergenciais. As vacinas vão derrubar o número de hospitalizados e mortos até o meio do ano. No final de 2021, a pandemia será coisa do passado, e a economia vai se recuperar rapidamente. Apesar disso, a economia política nos ensina que, uma vez que um direito é criado, é difícil extingui-lo. Nos EUA, o governo vai usar todas as oportunidades que tiver para aprovar mais gasto público. É sempre tentador, para a esquerda, gastar sem limites e dizer que a teoria monetária moderna afirma que não há risco de inflação. O caso brasileiro é diferente, porque, aí, a pandemia não passou e não é muito convincente o governo extinguir os auxílios antes de uma melhora na saúde pública.
A pandemia escancarou as desigualdades. Como os governos podem enfrentá-las antes que elas prejudiquem o funcionamento da economia e da democracia?
Nas democracias, o combate à desigualdade é uma decisão política, depende da vontade do eleitor. Se, por exemplo, os americanos quiserem um país mais parecido com a Dinamarca e menos com o Chile, vão apoiar as propostas fiscais de Biden e penalizar os republicanos. Mas não parece que a representação democrata no Congresso vai aumentar na próxima eleição. Se houvesse realmente tanto apetite por mais igualdade, os partidos de esquerda estariam se saindo melhor. Só se fala em desigualdade, mas a esquerda vai mal. Não consigo ver lógica aí.
O Brexit, que o senhor já comparou a um divórcio, foi concluído em janeiro. O que achou do resultado?
Como divorciado, quis alertar que todo divórcio sempre é mais longo e mais caro do que esperamos. Talvez o Brexit seja bom tanto para o Reino Unido quanto para a União Europeia, que agora pode seguir com os planos de federalização sem a oposição britânica. As diferenças eram suficientes para que o divórcio fosse a melhor saída. Até Tony Blair reconhece que o Brexit é um caminho sem volta. Em todo divórcio, chega a hora de aceitar que alguém vai pagar pensão e de seguir com a vida.
O Brexit vai incentivar a independência da Escócia?
Pesquisas mostram que o apoio à independência tem aumentado. Nenhuma lei da física diz que o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte deve permanecer uma unidade política até o fim dos tempos. Os parlamentos inglês e escocês só se unificaram em 1707.A Escócia é um país pequeno, com potencial econômico limitado, e que se beneficiou da união com a Inglaterra. Se votar pela independência e quiser se candidatar à UE, vai para o fim da fila, atrás da Sérvia. A Escócia pensa ser um país escandinavo, mas é mais parecida com os Bálcãs. Nós esquecemos como era ser independente. Até o século XVIII, a Escócia era o Afeganistão da Europa. Talvez seja hora de pedir à Escócia que mostre suas cartas.