João Gabriel de Lima
Estadão
Parte do enredo de “As Invasões Bárbaras”, filmaço que levou o Oscar de produção estrangeira em 2003, se passa nos corredores de um hospital público do Canadá. O que se vê não combina com um país considerado modelo de bem-estar social: doentes amontoados pelos corredores, atendimento precário, burocracia infinita para agendar procedimentos.
O protagonista do filme, Rémy, tem uma doença terminal. Ele só consegue tratamento decente porque seu filho, Sébastien, pode pagar os honorários dos melhores médicos.
CANADÁ E BRASIL – Poucos países são mais diferentes que Canadá e Brasil. Jogamos vôlei na praia, eles brincam com bonecos na neve. Nosso mito musical é Tom Jobim, o gênio da bossa nova; o deles, Glenn Gould, pianista que revolucionou a música clássica.
No mundo do coronavírus, no entanto, os dois países têm a pandemia em comum – e precisaram desenhar programas emergenciais a toque de caixa. “O Canadá criou do dia para a noite um seguro-desemprego dos sonhos”, diz o cientista político Ricardo Tranjan, brasileiro radicado em Ottawa. Tal seguro pode inspirar algo que se estenda a tempos normais – o que seria um saldo positivo da pandemia.
Tranjan trabalha no Canadian Center for Policy Alternatives (CCPA), um think tank de políticas sociais com viés econômico.
REALIDADE PRECÁRIA – “A pandemia colocou em foco a realidade precária de vários trabalhadores essenciais ao Canadá, como cozinheiros, balconistas de farmácia, caixas de supermercado”, afirma Tranjan. Para ele, o flagelo que nos assola nada mais fez que chamar a atenção para uma questão de fundo: a transformação radical do mundo do trabalho no Ocidente.
O emprego industrial, com benefícios e a proteção de sindicatos, migrou para a Ásia ou vem sendo gradativamente substituído por robôs. Os novos postos de trabalho são na área de serviços, onde predomina a rotatividade. Os governos passaram a ter um enorme desafio: criar benefícios e seguros sociais para um número crescente de trabalhadores precários. Que, diga-se de passagem, são também eleitores.
Por isso, o sucesso da empreitada é condição de sobrevivência da própria democracia – e também a melhor vacina contra aventureiros populistas.
CIDADÃOS INDEFESOS – Com a pandemia, tornou-se clara a importância de um sistema eficiente de saúde pública. Na era da economia do conhecimento, cidadãos que não tiveram acesso a uma boa educação pulam de emprego em emprego e não têm benefícios.
Precisam de hospitais quando ficam doentes e de seguros fáceis de acessar quando estão sem trabalho – e não apenas de auxílios em situações de emergência.
Nada disso é barato. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, será necessário cortar despesas não essenciais – tarefa para o Congresso que retorna do recesso nesta segunda-feira (voltaremos ao assunto numa das próximas colunas).
SEGUROS SOCIAIS – Os estudos de Tranjan e seus colegas mostram que seguros sociais bem desenhados trazem retorno positivo para as economias como um todo, não apenas para os beneficiários.
A crise do coronavírus chamou a atenção para a importância de uma rede de proteção social permanente, nesta “era da precariedade” em que vivemos. O filme “As Invasões Bárbaras” flagra o processo no início – mostra um Estado incapaz de dar conta das necessidades dos cidadãos.
Eis o maior desafio dos governos democráticos, sejam eles de esquerda ou de direita – afinal, nem todo mundo tem, como Rémy, um filho rico para pagar as contas do hospital.