deputado critica a ocupação da USP, o movimento no Ibama, a invasão de Tucuruí e modera o discurso sobre liberação da maconhaPor HUGO STUDART E RUDOLFO LAGO
Da clandestinidade da guerrilha urbana na época do regime militar à política do corpo, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) construiu ao longo de 40 anos uma biografia de transgressor. Na política, já foi petista e é fundador do Partido Verde. Com quatro mandatos de deputado federal pelo PV, é um notório militante das causas ambientalistas, defensor do casamento gay e da legalização do consumo da maconha - só que, agora, com nuances. Aos 66 anos, duas filhas adultas, Gabeira continua atento às transgressões. Neste momento, observa as que estão em curso no País, como a ocupação da reitoria da USP pelos estudantes, a greve dos servidores do Ibama e a invasão da usina de Tucuruí. Mas o ex-guerrilheiro, quem diria, virou um crítico das transgressões exageradas. Mais: prega mais firmeza das autoridades.
ISTOÉ - Como o sr. avalia o movimento dos estudantes na USP? Fernando Gabeira - A forma de luta mais adequada seria a político-jurídica. O professor Dalmo Dallari diz que os decretos são inconstitucionais. Logo, haveria a possibilidade de uma ação jurídica. Toda greve tem seus limites éticos, e o bom é que essa questão já está sendo discutida dentro da própria USP. Os estudantes de odontologia, por exemplo, decidiram não fazer greve porque acham que ela significaria um prejuízo à saúde alheia. Esse é o tipo do dilema que nós temos visto em outras greves.
ISTOÉ - Que dilema? Gabeira - Um exemplo é a greve do Ibama. A paralisação dificulta a negociação daqueles que querem ajudar, enfraquece o setor ambiental no conjunto. De certa forma, você abandona a questão ambiental para fazer greve. Dá a impressão de que a sua luta é mais importante que o próprio meio ambiente. Na USP, da mesma forma, existe a mesma discussão. De um lado, quem acha que tem de parar porque a razão é justa, e outros que acham que a paralisação provoca um prejuízo maior à sociedade.
ISTOÉ - Na USP, a discussão é sobre a autonomia universitária, uma velha bandeira do movimento estudantil. Gabeira - Um grupo diz: "Estão quebrando a autonomia." O outro grupo diz: "Não, não estamos quebrando a autonomia, mas a autonomia se dará dentro de circunstâncias." A margem para negociação, imagino, é grande. O conceito de autonomia diz respeito à liberdade que a universidade deve ter de usar o seu dinheiro. Mas isso não significa deixar de dar satisfações à sociedade. Tem que dar satisfações, sim. Então o problema maior que se coloca na USP é o seguinte: o movimento passa a acontecer à margem da lei. A Justiça já determinou que a invasão da reitoria é ilegal. A questão agora é como lidar com isso.
ISTOÉ - E como se deve lidar com isso? Gabeira - O Estado democrático dá dois caminhos: o uso da força ou a negociação. A simples negociação talvez não resolva. Mas o uso da força também não resolverá. A alternativa seria um processo de negociação no qual, simultaneamente, se retiram as condições de sobrevivência da invasão. Tira a luz, a água, vai tornando a situação insustentável para os estudantes. E aumentando a negociação.
ISTOÉ - Existe um conflito entre a sociedade e os interesses corporativos de quem comanda movimentos como os da USP e do Ibama? Gabeira - A autonomia universitária significa para a universidade liberdade de atuação. Mas autonomia para quê? Isso não está claro. Essa autonomia não pode se circunscrever aos interesses universitários. Qual vai ser o uso do orçamento autônomo? Se você comparar a luta estudantil atual com as do passado, a de hoje parece ser muito mais uma defesade interesses particulares dos estudantes. A antiga luta estudantil estava articulada a uma luta política maior, a mudar o sistema político.
ISTOÉ - Os movimentos políticos perderam as grandes bandeiras e viraram meramente corporativos? Gabeira - Não totalmente. Entre os estudantes da USP, deve haver aqueles que ainda têm essas preocupações mais amplas. Mas são tão minoritários que ficam escondidos. Na verdade, tanto a greve do Ibama como os movimentos dos servidores públicos são movimentos setoriais. Como um setor que quer se definir, ainda que provocando prejuízos ao meio ambiente ou a quem quer estudar. No caso do Ibama, quando você arranha essa tese, o argumento é que se está causando um prejuízo momentâneo para ter um ganho maior no futuro. Mas, mesmo assim, isso é contraditório. Existem formas de lutas que significam, simultaneamente, uma vontade de preservar seus interesses e também de envolver a sociedade. No caso da USP, entrar na Justiça, fazer valer os direitos sem prejudicar as atividades da universidade. A estratégia política tanto dos estudantes da USP quanto dos servidores do Ibama me parece fora do tempo.
ISTOÉ - O que o sr. sugere? Gabeira - Uma estratégia política mais condizente com o atual curso da democracia no Brasil. Que possibilitaria atrair mais forças a seu favor. A mídia está aberta, a Justiça respondendo mais rapidamente. Assim, há como fazer a coisa crescer na sociedade.
ISTOÉ - O sr. pegou em armas, seqüestrou um embaixador. Por que a transgressão era válida naquela época e hoje não é mais? Gabeira - Naquela época, tudo o que se fazia era vinculado a uma visão de transformação global. E achava-se que a estrutura legal impedia essa transformação, porque era uma estrutura legal burguesa criada exatamente para evitar essas transformações. Agora, no Estado Democrático de Direito, não é essa a relação que você tem com a lei. Se você não tem mais a expectativa de romper com o Estado Democrático de Direito, você tem outros caminhos para recorrer. Nossas opções naquela época implicavam prisão, tortura, perda de vida... Hoje são apenas estudantes lutando para que a sua concepção de universidade seja vitoriosa.
ISTOÉ - O movimento estudantil não está mais vinculado a uma discussão política mais ampla? Gabeira - No passado, havia uma visão global de trocar o capitalismo pelo socialismo. Hoje, vivermos uma situação em que o capitalismo é uma realidade. As alternativas postas em prática pela história não deram certo. Então, hoje nada mais resta senão aceitar o capitalismo e tentar transformá-lo, não derrubá-lo. Hoje é possível utilizar outras formas de luta, que não rompem com os requisitos legais, com uma capacidade de êxito maior. Um contra-exemplo drástico é a invasão de Tucuruí.
ISTOÉ - Mas o sr. não defende o movimento das populações atingidas pelas barragens? Gabeira - Defendo. Já estive muitas vezes com eles. Mas aquela invasão foi um equívoco muito grande. Um equívoco porque Tucuruí representa uma central de eletricidade que atende muita gente. Um equívoco porque a ação foi feita com violência, usando bombas caseiras. Um equívoco porque apertaram botões que eles não sabiam para que serviam. Podiam ter provocado um desastre muito grande. O próprio líder do movimento quando sai, diz: "Agora, eu vou derrubar uma torre." Em qualquer país do mundo, ele seria chamado a uma delegacia ou a um juiz e se explicaria a ele o tamanho do transtorno que ele poderia causar. Você pode tirar a energia de um hospital no meio de cirurgias graves. Provocar acidentes. Colocar doentes que dependem de aparelhos em risco de vida.
ISTOÉ - Faltou autoridade, então? Gabeira - Em vários casos tem faltado uma clareza. E isso é explicável. Esses movimentos apoiaram a eleição de Lula. E eles meio que se sentem à vontade para tentar fazer as coisas andarem mais rápido. O governo Salvador Allende, no Chile, viveu isso o tempo todo. Agora, quando se dirige o País com uma perspectiva de estabilidade e não de transformação, então tem de tomar atitudes que deixem isso claro. Tem que impor os limites legais. Responsabilizar as pessoas.
ISTOÉ - É o que acontece também no Movimento dos Sem Terra? Gabeira - Sim. É mais uma vez um movimento tentando pressionar o País para andar mais rápido. Mas, andar mais rápido para onde? Até que ponto a idéia que se tinha de reforma agrária se mantém? O governo já viu que a reforma agrária não se limita a dar um pedaço de terra. O Lula entende que aí precisa haver um ajuste. Mas, ao mesmo tempo, ele evita um confronto. O problema é que, quando você evita o confronto, talvez o processo posterior seja mais grave. Vai adiando e criando as bases, depois, para um novo confronto. No caso de Tucuruí, o governo agiu certo ao mandar as Forças Armadas ocuparem a usina. Porque é um bem ligado à segurança nacional. Mas, por outro lado, não houve uma condenação política clara quanto à ocupação.
ISTOÉ - No caso da USP, como o governo estadual pode negociar? Gabeira - O governador Serra é um exlíder estudantil. Creio que ele tem medo de um desgaste na sua biografia se endurecer com os estudantes. Ao mesmo tempo, ele sabe que forças políticas adversárias estão integradas ao movimento dos estudantes. Isso gera uma relativa cautela. Mas essa cautela tem que ter limites.
ISTOÉ - Se fosse estudante hoje, o sr. estaria na reitoria ou na sala de aula? Gabeira - A gente percebe que existe uma divisão entre os cursos de humanidades e os cursos técnicos. Se eu estivesse num curso técnico, talvez estivesse trabalhando. Mas, mesmo que estivesse no movimento, eu teria uma discordância. Eu sou mais pela luta política dentro dos limites legais. Possivelmente, estaria junto, mas discordando do caminho.
ISTOÉ - O governo criou regras para estabelecer limites para a programação das TVs. Essa programação deveria ter limites? Gabeira - O único limite aceitável é o do controle remoto. Muda de canal, desliga a tevê.
ISTOÉ - Chegou a hora da união civil entre pessoas do mesmo sexo? Gabeira - Se você entender o casamento como deve ser, sem conotação religiosa, mas como uma união entre duas pessoas, mais do que chegou a hora. É como a abolição da escravatura. Será que, de novo, nós só vamos fazer quando já tiver acontecido em todo o mundo? Nossa sociedade já está madura para isso.
ISTOÉ - E, no caso da legalização das drogas, a sociedade também está madura? Gabeira - Nesse caso, não. Não aconteceu a liberação das drogas onde a polícia, a autoridade, também não tenha evoluído. Na Holanda, por exemplo, é liberado nos coffe-shops, mas com câmeras ligadas. Na Inglaterra, quem pediu para liberar em certas áreas foi a própria polícia. Não é um conceito de liberou geral. Mas de estabelecer um controle mais sutil. O Estado tem de se fortalecer para garantir esse direito. A verdade é que o nível de controle em uma sociedade em que a droga é liberada acaba sendo um nível de controle maior do que os que existem em lugares onde é proibido.
ISTOÉ - O sr. retrocedeu em relação ao que defendia antes sobre isso? Gabeira - Quando comecei a examinar isso de perto, vi que a liberação só se dava em sociedades mais avançadas, e não em sociedades corrompidas como a nossa.
ISTOÉ - O sr. falou em corporativismos. No Congresso o debate dos escândalos se dá também mais no nível da defesa uns dos outros. Gabeira - A solidariedade no Congresso se dá mais em torno dos denunciados do que com relação aos flagelados que não tiveram as suas casas concluídas por conta de obras de habitação superfaturadas. Existe uma visão de "nós, os eleitos" e a sociedade. Muitas vezes, a sociedade ganha o nome de "mídia". E, aí, gera uma hostilidade contra aqueles que procuram responder à sociedade através da mídia. Interpretam como uma vontade de aparecer. A relação com a mídia tem de ser um trabalho cotidiano.
Fonte: ISTOÉ
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