Se naquele período, mesmo democrático, a estrutura era instrumentalizada para fins políticos, com a criação da Abin as coisas pioraram. Muito pressionado, FHC admitiu que o serviço de inteligência voltasse ao guarda-chuva dos generais, vinculando a nova Abin à antiga Casa Militar, basicamente um escritório militar dentro da Presidência da República.
O cenário fica ainda pior com o golpe contra Dilma Rousseff. Em uma de suas primeiras ações, Michel Temer transformou a Casa Militar no Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, e o elevou ao status de ministério. Como ministro-chefe, nomeou o general Sérgio Etchegoyen, então chefe do Estado-Maior do Exército. O militar, então, passou a ter papel-chave no governo.
Com a caneta na mão, Etchegoyen semeou as condições ideais para um escândalo de espionagem. Uma de suas principais medidas foi um decreto que instituiu a Política Nacional de Segurança da Informação. O texto abriu espaço para contratações sem concorrência pública com base na “ameaça à segurança nacional”.
Dessa forma que a Abin pôde contratar, sem transparência ou licitação, o First Mile, software israelense utilizado para monitorar a localização de seus alvos – e usado de forma massiva no governo Bolsonaro. Mas não foi só esse o legado de Etchegoyen para a erosão democrática causada pela devassa na privacidade dos brasileiros.
Foi o general que levou ao GSI, ainda em 2017, um dos principais protagonistas do escândalo de espionagem bolsonarista: Giancarlo Gomes Rodrigues, sargento do Exército com quem havia trabalhado junto no Estado-Maior do Exército em 2015 e 2016.
Uma portaria publicada no Diário Oficial da União em agosto de 2017 mostra a autorização do então comandante do Exército, o general Eduardo Villas-Bôas, ao pedido de Etchegoyen para que Giancarlo passasse a integrar os quadros do GSI de Temer. Agora, como revelou a PF, sabemos que Giancarlo é peça-chave no escândalo de espionagem bolsonarista: foi quem sugeriu um tiro na cabeça de Alexandre de Moraes.
Longe dos holofotes, Etchegoyen não foi o único que passou longe das investigações da PF e do debate público sobre os crimes da Abin. Seu sucessor no GSI, o general Augusto Heleno, também não consta no relatório, não é investigado, tampouco foi incomodado nos últimos meses. Ele era, de fato e de direito, o chefe de Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin.
Heleno era uma das pessoas presentes na reunião, também revelada pela PF, em que Bolsonaro e Ramagem discutem como usar a Abin para proteger o senador Flávio Bolsonaro, do PL, das investigações sobre os crimes de rachadinha, em 2019. Em uma das reuniões golpistas de 2022, Heleno sugeriu colocar a Abin a serviço do golpe de estado.
Como os generais que têm escapado da PF, a estrutura de inteligência das Forças Armadas também segue protegida, longe do escrutínio público. Ainda que nunca tenham largado a Abin, os militares não deixaram de investir nos seus próprios centros de inteligência no Exército, na Marinha, na Aeronáutica e no Comando de Defesa Cibernética, que reúne membros das três forças.
É fato: para Bolsonaro, o cerco está fechando. Mas, para os generais que lhe abriram espaço e criaram as condições para um golpe, isso ainda está muito longe de acontecer.