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sábado, outubro 08, 2022

Os liberais não passaram ilesos




Sem um líder claro ou capacidade de articulação para além das vias estreitas que sobraram, o campo liberal-democrático viu seus partidos se enfraquecerem, se esfacelarem em lutas internas, e inviabilizarem a eleição de alguns dos seus melhores nomes.

Por Magno Karl* (foto)

A história das eleições brasileiras de 2022 foi a história do bolsonarismo contra o lulismo. Em um cenário que contava com outros nove candidatos à presidência, Luis Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro obtiveram somados mais de 91% dos votos. Suas candidaturas sufocaram os campos políticos adjacentes e transformaram parceiros fiéis em campeões de popularidade. O cenário foi ainda pior para quem disputava uma vaga nas Assembleias Legislativas ou na Câmara dos Deputados, de onde os não alinhados à polarização ficaram próximos de desaparecer.

Os liberais não passaram ilesos ao fenômeno, e terão quatro anos dificílimos para a reconstrução de sua representação parlamentar. Neste ano, o exíguo tempo para campanha e divulgação dos números dos candidatos já dificultavam o trabalho baseado em um bom cartel de realizações ou projeto de mandato. Sobravam assim ao candidato, sua capacidade individual de mobilização como político-personagem —que tem ligação direta com o eleitor por sua personalidade ou dedicação a uma pauta específica— ou a associação a um líder político que o chancelasse. Nesta década, começar do zero ficou mais fácil, mas receber a atenção do eleitor ficou bem mais difícil.

A forma como a informação chega ao eleitor também mudou nos últimos anos. Perderam influência as vias institucionalizadas, a informação que vem de cima para baixo, dos jornais e revistas, dos especialistas e dos grandes oradores. Hoje a informação vem de todos os cantos, por todos os lados. Todos a produzem, todos a disseminam, todos a confirmam ou contestam. A aproximação com o consumidor que transformou profissionais em estrelas também trouxe a contestação generalizada às suas atividades, dos jornalistas aos cientistas.

Nesse contexto de descrença sobre o establishment e suas ações, além da desconfiança sobre seus interesses, a definição das prioridades programáticas ou da agenda para o período eleitoral deixa de ser feita pelas elites intelectuais, financeiras ou partidárias, e passa a acontecer de forma mais fluída, dispersa e responsiva às demandas de grupos específicos da população. Em seu livro The Revolt of the Public, lançado em 2014, Martin Gurri descreve que vivemos há pouco mais de uma década em um processo de ataque aos “guardiões de autoridade”, de fontes estabelecidas e legítimas de informação e poder. O público que até então era apenas espectador dos ditames de uma elite passa a ser ator. A comunicação digital na mão do público permite a existência de um ambiente de conflito permanente, de confronto de pontos de vista. Como Gurri menciona, a esfera pública se tornou uma batalha campal.

Contaminado pelo clima, o eleitor tinha uma única pergunta em 2022: você é Lula ou Bolsonaro? Para ganhar o voto, era necessário não apenas ter uma resposta para a pergunta, mas estar engajado na disputa que ela anuncia. Se o embate entre os dois candidatos era uma questão central para o futuro do Brasil, o eleitor queria indicar soldados para o seu lado. Neste caso, infelizmente para os liberais, boas respostas sobre caminhos alternativos à dualidade apresentada não satisfaziam aqueles que buscavam aliados na guerra contra o outro lado.

As mudanças descritas por Gurri, crescentemente perceptíveis no Brasil dos últimos anos, nos apresentou um novo tipo de campanha política. Nele, os grupos ligados a figuras carismáticas, como os lulistas e os bolsonaristas, levam vantagem sobre os grupos que veem a ação política sob a ótica da racionalidade argumentativa, dos gráficos e das políticas públicas baseadas em evidências.

A autoridade do jornalista que seleciona um deputado de ideias, que se aprofunda nos temas, e até municia seus pares com argumentos foi substituída pelos algoritmos de um vídeo viral, gravado por outro parlamentar que se comunica diretamente com um público mais ligado e interessado em seus temas e seu nome do que um espectador distraído do Jornal Nacional jamais será. Não se sabe por quanto tempo esta tendência permanecerá, mas, enquanto os liberais trabalhavam pela sua presença na política e em instituições relevantes da sociedade democrática, o mundo mudava sob nossos pés.

A dificuldade de construção de uma narrativa sólida de oposição ao bolsonarismo e ao lulismo também dificultou a vida de quem buscava votos entre os dois campos dominantes na política nacional. Lula e Bolsonaro jamais deixaram de fazer campanha eleitoral. Por outro lado, uma coalizão de partidos formada a poucos meses das eleições e minada internamente por disputas entre caciques não é campo fértil para a construção de um programa estruturado, base para o florescimento de uma alternativa à polarização.

Sem um líder claro ou capacidade de articulação para além das vias estreitas que sobraram, o campo liberal-democrático viu seus partidos se enfraquecerem, se esfacelarem em lutas internas, e inviabilizarem a eleição de alguns dos seus melhores nomes. Em Pernambuco, Daniel Coelho obteve mais de 110 mil votos, foi o 11° mais votado no estado, mas não foi eleito pois a federação PSDB e Cidadania não atingiu o quociente eleitoral. O mesmo se repetiu no Espirito Santo, onde Felipe Rigoni, o 6° mais votado no estado, perdeu sua vaga pela fragilidade da chapa do União Brasil. Em Minas Gerais, onde o Novo reelegeu o governador Romeu Zema, o partido não elegeu um único deputado federal.

Há pouco mais de uma década, a presença de autodeclarados liberais nas câmaras de vereadores, assembleias legislativas e na Câmara dos Deputados pareceria um sonho distante. O progresso recente se deve à coragem de pioneiros que colocaram trabalho e recursos à disposição da melhoria do país, e eles nos fizeram muito bem.

Mas a beleza e a tristeza da política é que a vontade do eleitor é soberana, imprevisível e, às vezes, independe do que a atuação de cada um agrega à sociedade. As inestimáveis perdas sofridas pelos liberais nas eleições de 2022 não serão compensadas por reflexões no debate público. Dezenas de vozes estarão fora de uma legislatura importante, vitimados pela disputa entre dois gigantes populares e pela decisão dos eleitores que buscavam respostas simples num quadro de polarização complexo.

Nós temos hoje uma geração valorosa disposta a trabalhar para vencer pela construção de alternativas às forças destrutivas que dominam o cenário político nacional. Circunstâncias e conjunturas mudam. O pêndulo da política vai e vem. É necessária a construção de um campo sólido, que reúna lideranças em torno de um programa básico. Responsabilidade fiscal, social e ambiental, com reforma do Estado, enxugamento da máquina e avaliação de políticas públicas. Soluções de mercado para a geração de oportunidades com foco em quem mais precisa. Simplicidade para quem gera emprego. Abertura para a inovação, ciência e tecnologia, integrando o Brasil ao mundo. Respeito aos direitos humanos e valorização da diversidade. Uma agenda moderada e gradualista, que substitua a gritaria pelo diálogo, mas que mantenha uma identidade clara.

Em torno dessa agenda comum, é preciso atenção à capacidade de manter lideranças mobilizadas, evitando a dispersão e as pequenas disputas. Quem sabe, agregadas em menos partidos e mais ligadas aos novos meios de construção de reputação e autoridade política. É um sonho distante, mas possível. Depois de uma derrota sofrida, do terreno arrasado, o que nos sobra é juntar os cacos e reconstruir o que perdemos. Temos a oportunidade de construir um campo novo sobre aquele que foi devastado. E o trabalho precisa começar agora.

*Magno Karl é cientista político e diretor-executivo do Livres

Revista Crusoé

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