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terça-feira, setembro 06, 2022

Entrevista: Anne Applebaum: a solução para a guerra é a saída de Putin




Em entrevista, a historiadora considera que a derrota da Rússia e a saída de Putin são a solução para a guerra. Diz que as sanções estão tendo resultados e que a Europa tem de apoiar mais os ucranianos.

Por Luís Rosa

Anne Applebaum é uma das principais historiadoras do período do pós-II Guerra Mundial e escreveu várias obras de referência sobre a União Soviética e a forma como os comunistas construíram aparelhos de repressão que nada diferem do totalitarismo da Alemanha nazi. Com uma forte sensibilidade jornalística, profissão que também abraçou, costuma contar a Grande História através dos olhos dos cidadãos comuns e da forma como as suas vidas foram afetadas pelos acontecimentos históricos.

A norte-americana Anne Applebaun, 58 anos, contudo, não se resume ao passado. Como jornalista no Washington Post e agora na revista Atlantic, acompanha de perto a realidade dos países do leste europeu. Casada com Radoslaw Sikorsk, ex-ministro polaco dos Negócios Estrangeiros, Applebaum viveu durante muitos anos em Varsóvia e conhece como poucos a passado e o presente do antigo bloco comunista.

Muitos dos seus livros têm sido editados em Portugal. O último foi “Fome Vermelha — A Guerra de Estaline contra a Ucrânia” (Bertrand Editora), que retrata a Grande Fome na Ucrânia que vitimou quatro milhões de ucranianos nos anos 30, após Estaline ter ordenado a captura de todas as colheitas do “celeiro da Europa”.

Quando a II Grande Guerra terminou, a Ucrânia fazia parte da União Soviética desde 1921. Winston Churchill, por exemplo, no seu famoso discurso sobre a ‘Cortina de Ferro’, referiu praticamente todas as capitais dos países de leste que não eram livres mas não mencionou Kiev. Ninguém olhava no Ocidente naquela época para a possibilidade nascer uma Ucrânia independente?

A Ucrânia ao longo da sua história foi uma nação que fez parte de vários impérios. Na sua origem, teve a sua soberania, nomeadamente na Idade Média, mas fez parte durante muito tempo do Império Polaco e da Comunidade Polaco-Lituana e, a seguir, fez parte do Império Russo. Por essa razão, a Ucrânia não conseguiu atrair a atenção e a simpatia do Ocidente — cujo pensamento sobre os estados a partir do séc. XIX ficou marcado pelo conceito de Nação. Mas também porque a Ucrânia falhou em 1918 o objetivo de ganhar a sua independência. Ao contrário dos polacos, austríacos, húngaros, checos-eslovacos, etc.— que faziam parte de impérios e ganharam a sua independência —, os ucranianos tentaram mas não conseguiram. Essa é uma das principais razões pelas quais nós, no Ocidente, temos dificuldade em perceber “o que é a Ucrânia?” e “quem são os ucranianos?”. Tudo porque eles só foram independentes a partir de 1991.

Diversos analistas internacionais falam do conflito ucraniano como o início de uma nova Guerra Fria. Mas este conflito é muito diferente por ter vários atores em confronto (não são só dois) e por ser imprevisível. A crise ucraniana é mais perigosa do que alguma vez a Guerra Fria foi?

É mais perigosa porque Putin não respeita e não se deixa limitar pelas regras diplomáticas tradicionais. O Ocidente nem sequer tem um canal de comunicação normal para falar com o Governo russo. No tempo da Guerra Fria havia linhas telefónicas especiais que ligavam Washington a Moscovo.

Os famosos telefones vermelhos que estavam nos gabinetes dos presidentes dos Estados Unidos e da União Soviética?

Exatamente. Esses telefones vermelhos já não existem. Eu contacto com fontes bem colocadas na administração norte-americana e eles dizem-me: “Nós não temos nenhum contacto com os militares russos”, ao contrário do que acontecia durante a Guerra Fria. Nesse sentido, a crise atual é mais perigosa. Mas também é perigosa porque Putin é essencialmente um revisionista. O seu principal objetivo é mudar as regras das relações internacionais, de forma, por exemplo, a minar o respeito pelas fronteiras estabelecidas na Europa ou pelo respeito que temos pelos direitos humanos e pelas regras da guerra. É esta premissa que torna esta crise muito imprevisível.

Walter Ulbricht, o primeiro líder da República Democrática Alemã (RDA), disse em 1945 algo bastante elucidativo sobre o que os comunistas fariam na RDA e no resto do leste europeu: “Tem de parecer democrático, mas temos de ter tudo sob o nosso controlo”. Putin está a utilizar na Ucrânia as mesmas estratégias que Estaline usou para construir a Cortina de Ferro?

Para mim, observar a forma como os russos escolheram invadir e apropriar-se de território ucraniano tem o seu quê de estranho e deja vu. É exatamente uma réplica dos métodos usados pelo Exército Vermelho e pelo NKVD [Comissariado do Povo para os Assuntos Internos, a polícia política soviética] no leste da Polónia e no leste da Hungria entre 1941 e 1945. O método é o mesmo: encenar um apoio popular à invasão ou organizar processos de referendo fraudulentos. E, ao mesmo tempo, matar os genuínos e legítimos representantes locais das populações, como presidentes de câmaras ou outros autarcas, os intelectuais locais e até diretores de museus. A ideia é eliminar as elites da sociedade ucraniana e aterrorizar o resto da população. Foi precisamente isso que a União Soviética fez na Europa de Leste a seguir à II Guerra Mundial.

E foi também o que aconteceu na Crimeia, após a anexação de 2014. Esse foi outro momento muito estranho para mim. Quando vimos muitos dos russos que ocuparam a Crimeia a fazê-lo sem usar uniformes, todos perguntaram: “Quem poderão ser estas pessoas?” Eu sabia perfeitamente quem eram aquelas pessoas: eram forças especiais russas. O mesmo já tinha acontecido na Polónia em 1945 pela mão do NKVD. Os agentes da política secreta russa fizeram-se passar por militares polacos e disseram à população que vinham libertá-los dos nazis. Sabe uma coisa? Os russos nem sequer mudaram a linguagem que era utilizada pelo NKVD em 1945.

Se acreditarmos que a União Soviética foi um império, um império comunista, é justo dizer que o principal objetivo de Putin é reconstruir esse império soviético, continuando o imperialismo russo que se iniciou com Pedro, o Grande?

Sim, é justo fazer essa afirmação. Apesar de Putin se identificar mais com o imperialismo russo clássico do que com o imperialismo soviético. A memória concreta de Putin prende-se com o império soviético, visto que ele foi um jovem soldado imperial no KGB, tendo sido colocado na então RDA. Foi aí que Putin tomou consciência de que os soviéticos iriam perder o seu império e que ele teria de ir para casa. Reconquistar essa força imperial e a influência que a União Soviética chegou a ter no mundo global é um objetivo que ele persegue desde há vários anos.

Ironicamente, quando Putin regressa a casa nessa altura, vai trabalhar com Anatoli Sobchak, presidente da Câmara de São Peterburgo. Sobchak era uma das principais caras dos liberais russos que estiveram na origem da desintegração da União Soviética e na construção de uma economia de mercado e de um sistema democrático.

Sim. Em 1991, Putin estava em São Petersburgo, onde já tinham começado as privatizações em massa do antigo aparelho empresarial estatal soviético. É nessa altura que nascem os oligarcas russos originais que roubam o património da Câmara de São Petersburgo, exportam quantias astronómicas para que os bancos ocidentais consigam branquear tais capitais e voltam a importar o dinheiro limpo para a Rússia. Putin foi um dos criadores deste sistema de corrupção e de criação de riqueza para uma reduzida classe de empresários, os oligarcas. E essa é uma das razões que explica a sua riqueza pessoal.

Quando o Ocidente olhava para a Rússia durante os anos 90, conseguia encontrar liberais, que tanto defendiam a economia de mercado como a construção de uma democracia.

Os anos 90 foram um verdadeiro momento de abertura para Rússia. Realmente, havia um conjunto de pessoas que queria uma democracia e uma economia de mercado. O que não houve foi uma compreensão clara de que instituições seriam necessárias para sustentar e executar tais mudanças. O que também aconteceu foi que o antigo establishment soviético, com destaque para o KGB, estava sentado por detrás das cortinas, esperando o momento certo para tomar conta da situação. No entretanto, tentavam roubar o máximo que podiam.

As sanções económicas da União Europeia estão a ter, como alguns analistas previam, um efeito boomerang. A Europa entrará em recessão no Inverno à conta da questão energética, enquanto que Putin está a ganhar mais dinheiro a curto prazo com a subida dos preços do gás e do petróleo. Vamos mesmo ganhar esta guerra a longo prazo?

Há aí várias perguntas. Em primeiro lugar, as sanções económicas mais importantes são aquelas que afetam a capacidade de Putin de reconstruir a sua máquina de guerra…

De substituir armamento, de construir mais misseis e respetivas lanças de lançamento, etc.

Exato. São essas sanções técnicas, em tecnologia e outro tipo de equipamento que a Rússia tinha de importar, que fazem com que seja mais difícil construir mais tanques, por exemplo. Essas sanções técnicas estão a resultar, pelo que conseguimos ver dos dados das importações/exportações e do que Putin consegue construir em termos militares. Em termos económicos, também é possível ver diferentes desacelerações na economia russa. Portanto, conseguimos ver que há uma grande instabilidade económica na Rússia. Nesse sentido, penso que as sanções estão a resultar. A questão do gás e do petróleo é de uma natureza diferente. Infelizmente, e apesar de ter sido seriamente avisada, a Alemanha optou durante décadas por ficar dependente do gás russo e os alemães influenciaram muitos outros países europeus a seguirem as suas decisões. Ou seja, não estamos a falar da Europa em geral. O processo de procurar fornecedores e fontes de energia alternativas, o que já deveria ter sido feito há uma década, será um processo muito difícil.

Ao ponto de levar a mudanças políticas na Rússia?

O que fará realmente a diferença será a perceção na Rússia de que o país perdeu a guerra. As principais mudanças políticas na história da Rússia surgiram após a derrota em conflitos militares. 1905 [guerra russa-japonesa pelos territórios da Manchúria e da Coreia], 1917 [I Guerra Mundial] e a guerra do Afeganistão no tempo de Gorbatchev, são disso exemplo. A perceção de que se tratou de uma guerra desnecessária e que a Rússia perdeu, terá um enorme impacto nos russos. E isso é muito mais importante do que as sanções económicas.

Acha que isso é possível mesmo com o controlo férreo da imprensa e da liberdade de expressão?

Essa derrota não será necessariamente transmitida ao público pela imprensa. Mas os russos saberão à mesma que perderam.

Ao contrário da crise que levou à dissolução da União Soviética no início dos anos 90, quando olhamos para o regime de Putin não vemos um grupo de liberais, um grupo de conservadores ou um grupo de autocratas. O putinismo parece uma corrente muito homogénea de nacionalistas e autocratas.

Nas versões anteriores do putinismo, os liberais desempenharam um papel. Eles não foram varridos do país. Mas, sim, tem razão. O putinismo atual não só é iliberal e autocrático, como também não tolera qualquer espécie de oposição ou qualquer espécie de indignação dos cidadãos. Isso foi eliminado da vida pública russa.

O melhor que podemos esperar é a subtituição de um Putin por um Putin mais soft?

Talvez. Mesmo assim, penso que teremos vantagens em ver Putin ir embora.

Tão importante como a questão energética, é a questão militar. Os Estados Unidos vão continuar a apoiar a Ucrânia?

Essa é a questão mais importante para percebermos se a Ucrânia vai ganhar a guerra: os Estados Unidos vão continuar a entregar armamento? Tanto quanto é possível ver, a resposta é positiva. Ainda esta semana houve declarações sobre um novo pacote de ajuda militar. Os norte-americanos não mudaram de ideias nem perderam a sua determinação. Há muitos europeus que não compreendem o seguinte: a ajuda militar dos Estados Unidos à Ucrânia não é só o dobro da ajuda europeia — é dez vezes mais. É muito mais. Essa é a questão que mais afeta a guerra.

Os países europeus, como a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, deveriam dar mais armas à Ucrânia?

Sim, deviam. É verdade que a União Europeia está a apoiar de forma concreta a reconstrução da Ucrânia e que talvez, neste momento, seja mais a sua área natural de apoio. Espero que isso venha mesmo a acontecer. Neste momento, nem sequer estou a ver os militares europeus preparados para combater o tipo de guerra que está a decorrer na Ucrânia.

Os orçamentos de defesa da maior parte dos países europeus nem sequer cumprem o objetivo dos 2% do PIB, definido pela NATO.

A Polónia, por exemplo, já está a investir 4% do PIB.

Na perspetiva russa, a causa do conflito na Ucrânia a longo prazo será a entrada massiva de países do leste europeu para a NATO, após 1991. A curto prazo, a recusa dos Estados Unidos em negociar com a Rússia um estatuto para a Ucrânia. O Ocidente tem alguma responsabilidade neste conflito? Havia mesmo, como os russos alegam, um compromisso dos Estados Unidos com Gorbatchev para não expandir a NATO para o Leste?

Não é verdade que alguém da administração norte-americana tenha feita uma promessa dessas a Gorbatchev. É importante dizer que a natureza e o status da NATO mudaram imediatamente após a dissolução da União Soviética no final de 1991. A expansão da NATO foi vista na época como uma extensão das instituições e da segurança providenciada pelo Ocidente aos países do leste europeu. Mais do que isso: no momento em que a decisão foi tomada, não houve nenhuma movimentação de forças militares da NATO para o leste europeu. Isso só aconteceu em 2014, com a invasão da Crimeia por parte da Rússia. Isto é muito importante porque demonstra que, na altura, ninguém via nenhuma necessidade de ter forças da NATO no leste europeu. A expansão da NATO foi um gesto político, nada mais.

A expansão da NATO não foi uma ação agressiva.

Não foi uma ação agressiva, anti-russa. Foi uma ação defensiva, em larga medida dos países do leste que pediram a adesão. A expansão da NATO foi feita com o objetivo de dar um sentimento de segurança e estabilidade a esses países. Nesse sentido, foi muito bem sucedida. A integração dos países do leste europeu no resto da Europa foi viabilizada, em primeiro lugar, pelas garantias de segurança providenciadas pela NATO, o que deu a confiança necessária às respetivas comunidades para pedirem mais tarde o acesso à União Europeia. Temos que perceber que os cerca de 60, 70 e 80 milhões de pessoas que habitam nos diferentes países do leste europeu têm uma história marcada pela instabilidade e por guerras tumultuosas. Essas comunidades foram trazidas para um sistema [a União Europeia e a NATO] que lhes providenciou um conjunto de leis e regras que permitiram alcançar 30 anos de crescimento e prosperidade.

Mesmo assim, há analistas no Ocidente que insistem que a expansão da NATO foi um erro, porque foi percecionada pela Rússia como uma ameaça. Há quem recorde que George Kennan, o diplomata norte-americano que mais terá influenciado a política externa dos Estados Unidos no pós-II Guerra Mundial, sempre disse que a expansão da NATO levaria a uma Guerra Fria.

George Kennan sempre foi contra a criação da NATO. Se ele era contra a criação, não admira que fosse contra a expansão da NATO… Eu não vejo Kennan como uma espécie de óraculo, como acontece com outras pessoas. Sim, é verdade que havia pessoas contra a expansão da NATO. Por exemplo, havia receios de que os países do leste europeu não conseguissem integrar os valores do Estado de Direito por estarem marcados pela violência e até pelo racismo. Esses receios acabaram por não se confirmar.

A Ucrânia, enquanto país soberano, tem o direito enquanto comunidade de escolher livremente o seu destino de entrar para a União Europeia e para a NATO? Se aceitarmos a doutrina das esferas de influência, na qual a Rússia é uma espécie de guardião do leste europeu, então estamos a dizer que países como a Ucrânia não são soberanos.

Claro. Eu só aceito a doutrina das esferas de influências quando as mesmas são naturais e têm fundamento. Porque razão é que aquilo que a Rússia foi no séx. XIX ou no séc. XIII, por exemplo, deve determinar o que a Rússia é no séc. XXI? Não, não aceito que exista qualquer esfera de influência ou qualquer ordem pré-estabelecida pela história da Rússia sobre a Ucrânia. A história não tem esse tipo de regras. O que acontecerá amanhã depende do que fizermos hoje. Não há nenhuma espécie de história pré-estabelecida.

A história dos países não é estática, é dinâmica.

Não há nenhuma espécie de determinismo histórico. Nenhum país é naturalmente seja o que for. Cada país é aquilo que os seus cidadãos quiserem que seja.

Isso leva-nos a outro ponto. A Ucrânia está longe de ser uma democracia, de acordo com os padrões ocidentais. Como a Rússia, também tem os seus oligarcas…

… as democracias ocidentais também não têm os seus oligarcas? (risos)

Não são propriamente a mesma coisa. A Ucrânia tem sérios de problemas de corrupção e instituições judiciais pouco ou nada independentes face ao poder político. Acredita que a Ucrânia conseguirá cumprir os critérios para entrar na União Europeia?

Sim, acredito. Só não sei quando é que isso acontecerá. Acredito que, após a guerra, vamos ver a Ucrânia a tentar alcançar a força económica e a estabilidade política necessária para cumprir os critérios determinados pela União Europeia.

A Polónia e a Hungria têm tido problemas com Bruxelas por não respeitarem as regras do Estado de Direito. A Polónia chegou a ficar com os fundos europeus congelados, mas beneficiou da necessidade política de termos uma Europa unida contra a Rússia para voltar a ter acesso a esses fundos. A União Europeia agiu corretamente?

Sou claramente a favor de que a União Europeia defenda o respeito pelas regras do Estado de Direito e aplique as suas próprias regras aos diferentes Estados-membros. Mas também devo dizer que a maioria dos polacos também pensam o mesmo. Qualquer coisa como 80% dos polacos apoiam o estatuto da Polónia como Estado-membro da União Europeia e a esmagadora maioria dos polacos apoiam o aprofundamento das regras do Estado de Direito na Polónia. Portanto, sou a favor dessa flexibilização.

O que está em causa é que o Governo polaco tentou controlar o poder judicial, por exemplo através das nomeações para os tribunais superiores. Podemos afirmar que o poder judicial polaco é verdadeiramente independente?

É verdade que o problema da independência do poder judicial ainda não foi resolvido. A origem do problema é a violação da própria Constituição polaca por parte do Governo do partido Lei e Justiça e isso continua por solucionar.

Um dos seus últimos livros, “O Crespúsculo da Democracia”, é um excelente retrato do autoritarismo de Viktor Orban na Hungria. Acredita que uma derrota de Putin na guerra da Ucrânia pode provocar mudanças na Hungria?

Não me parece que a derrota de Putin signifique a queda de Orban. Não faria essa ligação tão direta. Derrotar Putin seria um sério golpe para a extrema-direita de vários países europeus, como a de França, Itália ou Alemanha e até a de Portugal. Isso seria importante politicamente e até em termos financeiros, visto que Putin criou um sistema de corrupção de vários países europeus. Putin foi muito bom para muita gente na Europa.

Quando a Ucrânia entrar para a União Europeia, o centro do poder dentro da União deverá mudar cada vez mais para leste, até porque a regra da unanimidade em temas centrais deverá terminar a curto/médio prazo. Há razões para recear que as raízes do autoritarismo presente no governo de Órban e até do governo polaco do Lei e Justiça possam contaminar as instituições europeias?

Para ser muito clara, não penso que Órban ou o Lei e Justiça estejam no poder pelo facto de a Hungria e a Polónia serem ex-países comunistas. Seria como… nós não falamos de Portugal ou de Espanha como ex-países fascistas ou ex-ditaduras. Por isso mesmo, não é correto referirmo-nos à Polónia ou à Hungria como ex-países comunistas. Já passaram mais de 30 anos e as gerações que estão no poder não viveram o comunismo. Viktor Órban tem muito mais em comum com Trump, com Salvini ou com a Frente Nacional em França do que com o passado distante do comunismo. As raízes, as causas e as condições para o crescimento da extrema-direita e do autoritarismo nada têm a ver com o comunismo. Se olharmos para os países bálticos, como a Letónia, a Estónia ou a Lituânia, percebemos que esses povos têm excelentes governos.

Esses governos têm promovido políticas que levaram a um crescimento económico muito forte.

Exatamente. Não há nada que nos possa levar a dizer que o facto de um país ter pertencido ao antigo bloco comunista, signifique terá inevitavelmente um governo autoritário. Sobre este tema, estou muito mais preocupada com Itália, do que, por exemplo, com a República Checa, por exemplo. Os países do leste europeu não tinham esse problema de autoritarismo há uma década. Foram novos movimentos sociais e políticos da década de 2000, muito ligados à natureza e à influência das redes sociais, que criaram essa situação.

A minha pergunta tinha mais a ver com a preocupação que existe em Portugal e em Espanha com uma possível mudança do centro do poder para o leste europeu, algo que me parece inevitável. Nós estamos na periferia da Europa e é natural que tenhamos essa preocupação.

Há muitas vantagens em termos uma União Europeia maior. Por isso mesmo, terá de haver mudanças no processo de decisão antes de a Ucrânia entrar efetivamente, o que também ainda demorará algum tempo. Mas a inclusão da Ucrânia, com a sua população e os seus recursos naturais, será feita também com vantagens para Portugal. Se queremos que a Europa tenha uma voz e uma presença no palco global que ajude a influenciar a construção das regras da política e do comércio mundial, então é melhor que a União Europeia seja maior.

O seu colega historiador, o ucraniano Serhii Plokhy, disse este verão ao Financial Times o seguinte: “Acreditámos em 1991 que a União Soviética tinha chegado ao fim e que uma nova era tinha começado. E começou para muitos povos, incluindo os ucranianos. Mas não começou para o grupo principal [soviético]: a Rússia. Ou, pelo menos, para a sua elite Talvez o nascimento de uma nova identidade para a Rússia, uma livre da ressaca do império, seja o resultado duradouro desta guerra. Quero ser otimista”. Também está otimista?

Não é uma questão de estar otimista. Eu não acredito no determinismo histórico. Os russos não são geneticamente forçados a serem autocratas. Há uma alternativa dentro e fora da Rússia e há russos que querem algo completamente diferente do que existe hoje. Consigo imaginar uma Rússia muito diferente e tenho esperança de que isso aconteça após esta crise.

Observador (PT)

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