Bolsonaro não contestou sistema em 20 vitórias
Por Cristian Klein (foto)
Das nove eleições que disputou - uma para vereador (1988), sete para deputado federal (1990, 94, 98, 2002, 06, 10, 14) e uma para presidente (2018) - Jair Bolsonaro conquistou mandatos nas últimas seis vezes por meio das urnas eletrônicas. Em duas décadas, não contestou o resultado. Não fez cruzada contra o sistema de votação.
Seus rebentos Flávio (2002, 06, 10, 14 e 18), Carlos (2000, 04, 08, 12, 16 e 20) e Eduardo (2014 e 18) obtiveram, juntos, outros 13 mandatos (a vereador, deputado estadual, federal e senador). Todos sem voto impresso. A ex-mulher Rogéria, mãe dos três filhos políticos, elegeu-se vereadora do Rio duas vezes (1992 e 1996), uma pelo antigo e outra na estreia do então novo modelo. Até hoje, a família colheu 20 vitórias pelas urnas eletrônicas, sem reclamar do veredito da Justiça eleitoral.
Mas bastou Bolsonaro sair da posição de um azarão do baixo clero que vencia o primeiro turno da corrida presidencial, há quatro anos, para começar a semear suspeitas sem fundamento sobre o processo eleitoral. Dizia, sem qualquer evidência, que poderia ter ganhado já na primeira etapa. Coerente com toda sorte de ultraje que demonstrou durante a campanha, acrescentou a cereja do bolo ao seu perfil: o de mau vencedor.
Se Bolsonaro não soube ganhar, fica cada dia mais claro que não saberá perder. Será o mau perdedor, aquele que não respeita as regras mais elementares da democracia, entre elas a da transmissão pacífica de poder. Um Aécio 2.0, oito anos depois de iniciada a moda de melar o jogo. Isso para não retrocedermos a Carlos Lacerda e aos golpes da nossa história, dentro ou fora do contexto eleitoral.
O ardil de Bolsonaro já estava anunciado nos primeiros muxoxos sobre fantasiosas fraudes em urnas eletrônicas e piorou na medida em que viu sua popularidade cair. Há pouco mais de dois anos, em 9 de março de 2020, prometeu publicamente que apresentaria provas e jamais cumpriu a palavra.
O único objetivo é desacreditar o modelo de votação e deslegitimar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a quem cabe organizar as eleições, apurar os votos e diplomar os vencedores no país, há 90 anos.
A mesma Justiça eleitoral que garantiu a Bolsonaro e aos seus duas dezenas de mandatos é questionada e atacada quando as pesquisas mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na liderança. Coincidência? Eleito sob a colcha de retalhos que mistura, entre outros trapos, política e religião, o ocupante do Planalto já afirmou que “só Deus” pode tirá-lo do poder. Haja fé.
O arremedo de direito divino do absolutismo bolsonarista é nutrido pela aura de uma pretensa invencibilidade nas urnas. Em apenas uma de 25 eleições disputadas, o clã foi derrotado: a primeira majoritária, em 2016, quando Flávio concorreu a prefeito do Rio. O primogênito lançou-se contra a vontade do pai, que temia que uma má gestão do filho atrapalhasse seus planos à Presidência dois anos depois. Pode-se acusar Bolsonaro de tudo, menos de se iludir com a capacidade de governante no sangue da família.
Também não se ilude sobre o que lhe aguarda caso se concretize, neste ano, o segundo fracasso em sua história eleitoral. O temor de serem presos assombra Bolsonaro e integrantes do grupo político, a ponto de espernearem de todas as formas para se manterem no poder, custe o que custar.
A ameaça de um golpe, respaldado pelas Forças Armadas, já deixou de ser velada ou subreptícia, com ataques diários ao TSE e aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Não bastou a derrota no Congresso quando os parlamentares rechaçaram o projeto bolsonarista de retorno ao voto impresso - este sim, demonstradamente sujeito a fraudes.
Introduzido em 1996, o voto eletrônico brasileiro deu agilidade à votação e à apuração, facilitou o acesso a eleitores de baixa escolaridade, reduziu a margem para o erro humano, para a quebra do sigilo de voto e pôs fim a uma longa trajetória de falcatruas eleitorais que remonta aos primórdios da República. Do voto de cabresto, das adulterações de resultado em atas às engordas de urnas, que amanheciam com mais sufrágios do que os efetivamente depositados na véspera.
O retrocesso não passou. Mas Bolsonaro busca encontrar de todos os modos uma maneira de interferir no trabalho já de caráter independente do TSE. Diferentemente dos Estados Unidos, onde os políticos influenciam a administração e a justiça eleitoral, dando margem a favorecimentos e controvérsias - como na eleição de George W. Bush em 2000 - o Brasil tem no TSE e nas urnas eletrônicas uma instituição e um modelo de votação reconhecidos internacionalmente.
Nada disso importa para o projeto de poder e o instinto de sobrevivência de Bolsonaro, cuja novidade agora, anunciada ontem, na live que faz nas noites de quinta-feira, é a contratação de uma empresa para fazer uma auditoria externa “antes das eleições” de outubro. Ao avançar mais uma casa no terreno do golpe, o ex-capitão apela ao apoio dos militares. Antes inclinado ao legalismo, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, tem dado demonstrações de estar no bolso do presidente. “As Forças Armadas não vão fazer o papel de chancelar apenas o processo eleitoral e participarem como espectadores”, disse Bolsonaro.
O presidente alegou suposta defesa de “eleições livres de qualquer suspeita e de ingerência externa”. Não por coincidência, ontem o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Ned Price, disse que os Estados Unidos “confiam muito nas instituições democráticas do Brasil”. “O país tem um histórico sólido de eleições livres e justas, com transparência e altos níveis de participação dos eleitores”, afirmou. A declaração se dá também em meio à revelação, segundo a agência Reuters, de que o diretor da CIA, William Burns, disse a autoridades de alto escalão do Brasil, em julho do ano passado, que Bolsonaro deveria parar de questionar o sistema eleitoral do país. Quem vai pará-lo?
Valor Econômico