Em algum momento a população cobrará resultados e não adiantará mais falar em nome de Deus, da Pátria e da Liberdade ou chamar os adversários de comunistas
Por Fernando Luiz Abrucio* (foto)
Assumir a cadeira presidencial em 2023 será bem mais difícil do que em qualquer outro período da história recente. Claro que sempre é complicado governar o Brasil, um país complexo, desigual, com um sistema político que exige muitas negociações e com parte dos parlamentares interessados mais em negociatas do que no interesse público. Isso faz parte do jogo. Mas o bolsonarismo deixou uma herança que amplia os obstáculos à governabilidade em dois sentidos: ele não resolveu ou aprofundou os problemas do país e, pior, criou travas para a resolução das grandes questões nacionais.
O primeiro sentido da herança negativa do bolsonarismo está expresso no conjunto de problemas que ele deixou ou agravou em quatro grandes áreas de políticas públicas. A primeira refere-se às políticas sociais, cujas estruturas construídas em décadas foram desmontadas. Pegue-se o exemplo da saúde e da educação e se constata que o desastre foi enorme, com consequências de curto e longo prazo.
O fracasso na saúde ficou bem claro com a má condução da política nacional contra a pandemia de covid-19. Se não fosse o SUS, com seus profissionais qualificados e sua estrutura que ajudou a construir os serviços nos estados e municípios, talvez tivéssemos um número mais próximo de 1 milhão de mortes. Mas se não tivesse havido o negacionismo e a descoordenação federativa produzida por quem deveria zelar para cooperação entre os níveis de governo, a quantidade de óbitos teria sido bem menor. Especialistas calculam que em torno de 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas, para não falar daqueles que estão até hoje sofrendo sequelas terríveis da doença.
Os problemas da política sanitária bolsonarista não estão apenas no combate à covid-19. A cobertura vacinal do país está caindo vertiginosamente e a dengue explodiu neste ano, o que revela que o país não tem estratégias para combater doenças que atingem muita gente. Igualmente desastrosa é a gestão dos insumos de saúde, com a falta de vários medicamentos básicos no SUS, como não acontecia desde o início da década de 1990. E os programas para grupos mais vulneráveis, como a população indígena, tiveram um retrocesso gigantesco.
O fato é que o país está menos preparado agora para epidemias ou pandemias que podem nos assolar nos próximos anos, algo que, infelizmente, tem condições críveis de ocorrer. O esgarçamento do SUS vai aumentar a mortalidade e piorar a saúde dos mais pobres, com fortes efeitos sociais, além de afetar o capital humano disponível, com consequências ruins para a produtividade da economia.
Na educação, a situação é ainda pior. O bolsonarismo lavou as mãos para a crise educacional gerada por quase dois anos de escolas fechadas, com cerca de 5 milhões de alunos não tendo acesso ao ensino remoto. O governo federal teria de ter ajudado governos estaduais e municipais num país com grande desigualdade territorial, do mesmo modo que desde o governo FHC a União tem atuado para reduzir tais disparidades. As grandes questões educacionais foram deixadas de lado para que discussões sem nenhum impacto no aprendizado dos estudantes ganhassem centralidade. Junto com o abandono da educação básica houve a redução drástica do apoio à ciência e à tecnologia, o que nos condena ao subdesenvolvimento.
Para fechar esse ciclo de maldades, o MEC se tornou um antro de corrupção por meio do uso de emendas do Orçamento Secreto. Cabe frisar que o desastre bolsonarista na educação tem mais efeitos de longo prazo do que qualquer erro de política econômica. Perder quatro anos de política educacional significa reduzir a capacidade de desenvolvimento econômico e social do país, com menos oportunidades, ascensão social e produção de capital humano. Imagine oito anos num cenário como esse, qual seria o resultado?
A segunda herança perversa do bolsonarismo reside no fracasso das políticas ambientais. O meio ambiente é um ativo do país para o seu futuro econômico, para sua posição geopolítica e para garantir a diversidade natural que faz parte da civilização brasileira. O que temos tido nos últimos anos é o desmonte dos órgãos ambientais federais, o aumento do desmatamento, o crescimento do garimpo ilegal na Amazônia e a ameaça constante à preservação de todos os ecossistemas. O país estava virando uma referência internacional e já se tornou um mau exemplo.
Toda a população brasileira irá sofrer com isso: os mais pobres e os ruralistas, com a mudança climática que afetará a produção de alimentos; os trabalhadores e os bancos, pois o Brasil está perdendo muitos investimentos e financiamentos por não ter um selo verde no momento; os povos indígenas e os que moram no Sudeste, porque o que se perde de floresta pode significar menos água para os que vivem nos grandes centros.
A política externa é a terceira herança nefasta produzida pelo governo Bolsonaro. Em poucas palavras, o Brasil se isolou completamente dos principais circuitos geopolíticos e é visto como um pária pelos países mais importantes do mundo ou de nossa região. Já não é mais chamado para as reuniões do G7 - para a próxima, o Senegal foi convidado e nós, não.
O isolacionismo tem vários efeitos negativos, como deixar de participar de decisões globais de grande relevância, receber menos investimentos ou mesmo ter a possibilidade de sofrer sanções explícitas ou implícitas dos governos ou de suas sociedades, reduzir os intercâmbios científicos, em suma, ser desimportante e malvisto lá fora cobra um preço interno de menor desenvolvimento no presente e no futuro.
O desenvolvimento econômico e social fecha o ciclo de problemas estruturais que foram ampliados durante o bolsonarismo. No curto prazo, a inflação só aumenta e está fora do controle, e só voltará a níveis razoáveis em 2024 (se tudo der certo). Para reduzir esse problema, os juros foram aumentados, o que vai implicar um custo fiscal alto para o quadriênio que vem, num Orçamento já apertado, que não consegue garantir recursos adequados nem para investimento nem para evitar o sucateamento da máquina pública federal.
Completa esse quadro um alto desemprego, que não cairá para menos de 10% nos próximos dois anos, e uma queda da renda real da população, com maior impacto entre os mais pobres, cada vez mais pauperizados e sem acesso a bens básicos, além de terem perdido a esperança de ascensão iniciada com o Plano Real - na verdade, é pior do que isso: a fome voltou a ser um fenômeno amplo no Brasil.
Essas dificuldades de curto prazo alimentam-se da ausência de um projeto econômico e social de longo prazo. O governo Bolsonaro não tem um plano estratégico para o país, movendo-se mais pelos humores populistas do presidente frente às intempéries políticas. Num dia, propõe-se a privatização da Eletrobras - num modelo que vai aumentar o custo da energia no país -, enquanto noutro se intervém na direção da Petrobras. Numa semana o assunto é a liberdade econômica, na seguinte é a criação de um auxílio aos caminhoneiros - embora o que se mantém mesmo no Brasil são os subsídios às empresas, método já assimilado por Paulo Guedes. E o tema das várias desigualdades brasileiras? Este só aparece como estratégia populista e assistencialista. Com mais quatro anos de bolsonarismo, seremos mais pobres, mais desiguais e menos ricos.
É possível pensar que uma mudança de governo poderia alterar essa situação. Os mais esperançosos poderiam, ademais, acreditar que um segundo governo Bolsonaro seria capaz de evitar parte dos problemas criados por ele mesmo - o tom da campanha vai mostrar que é preciso ser muito Poliana para embarcar nessa tese. De todo modo, qualquer uma dessas hipóteses enfrenta um obstáculo maior. Existe uma segunda herança do bolsonarismo que não advém dos seus erros e fracassos nas políticas públicas. O pior legado bolsonarista é ter criado uma lógica política que dificulta bastante a saída da crise atual.
Paul Pierson, um grande cientista político americano, definiu um conceito que cabe bem a essa segunda herança do bolsonarismo, a mais profunda de todas. Trata-se do termo “path dependence”, cujo significado é que algumas trajetórias ganham uma força institucional e/ou social difícil de ser revertida. Bolsonaro estabeleceu uma lógica política que será um obstáculo à mudança quem quer que seja o novo presidente.
Entre seus elementos estão a (re)politização das Forças Armadas, o fortalecimento de uma oligarquia parlamentar pela constitucionalização do jogo individualista (quando não secreto) das emendas orçamentárias, a produção de uma visão autoritária contra as instituições em pelo menos 20% da população, o fortalecimento de grupos religiosos que atuam contra a secularização do Estado e o incentivo ao armamentismo da sociedade, facilitando inclusive à formação de milícias políticas e de bandidagem.
Esse “path dependence” retrógrado e autoritário criado por Bolsonaro será uma barreira às grandes transformações pelas quais o Brasil precisa passar para dar certo no século XXI. A saída dessa armadilha política será o maior problema do próximo presidente, talvez até para Bolsonaro, porque em algum momento a população cobrará resultados de políticas públicas, e não adiantará mais falar em nome de Deus, da Pátria e da Liberdade ou chamar os adversários de comunistas.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Valor Econômico