Ministro do Supremo venceu processo que condenou jornalista Rubens Valente a pagar R$ 310 mil por danos morais a respeito de livro sobre Operação Satiagraha. Entidade acionou Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Uma decisão judicial em processo movido pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), contra o jornalista Rubens Valente preocupa a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que vê risco de que a iniciativa abra um "precedente perigoso para o regime legal e constitucional da liberdade de expressão no Brasil".
Valente é autor de dois livros: Operação Banqueiro, sobre bastidores da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, que investigou o banqueiro Daniel Dantas, e Os fuzis e as flechas, sobre a repressão a indígenas durante a ditadura militar no Brasil. Também foi repórter do jornal Folha de S. Paulo por 21 anos e colunista no portal UOL.
Em um capítulo de Operação Banqueiro, lançado em janeiro 2014, Valente aborda a atuação de Mendes em relação à Operação Satiagraha, que resultou na prisão temporária de Dantas e depois foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) por ilegalidades nas investigações. O livro menciona ações de Mendes quando ele era advogado-geral da União, no governo Fernando Henrique Cardoso, e questiona a atuação do ministro no caso quando ele já estava no Supremo e concedeu dois habeas corpus a Dantas, depois confirmados pelo plenário da Corte.
Na época, havia críticas no meio jurídico à atuação do delegado da Operação Satiagraha, Protógenes Queiroz, e ao juiz de primeira instância, Fausto De Sanctis, a respeito de procedimentos de investigação e garantias dos investigados. Dantas pertence a uma tradicional família da Bahia e fundou o banco Opportunity, que comprou empresas estatais de telefonia durante a privatização promovida pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
'Valente afirma que sua condenação é "um atentado à liberdade de expressão e de informação"
A ação de Gilmar
Em abril de 2014, Gilmar Mendes moveu uma ação por danos morais contra Rubens Valente, alegando que ele havia sido difamado "a partir da exposição inventiva e gravemente distorcida dos fatos". O ministro argumentou que a obra atacava sua imparcialidade como juiz e distorcia sua biografia, entre outros pontos. Mendes pediu indenização à época de R$ 200 mil, e que uma cópia de sua ação e da sentença fossem publicadas na íntegra nas próximas edições do livro.
O juiz de primeira instância negou em maio de 2015 o pedido de Mendes, pois não encontrou "informação falsa ou o intuito difamatório" no livro. O ministro recorreu e ganhou a causa no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que determinou o pagamento de danos morais de R$ 30 mil. Mendes recorreu novamente e o Superior Tribunal de Justiça elevou a indenização para cerca de R$ 310 mil em valores atuais e obrigou a inclusão, em próximas edições da obra, da íntegra da petição inicial e da sentença do caso, que somam cerca de 200 páginas. A decisão foi confirmada pela Primeira Turma do STF em agosto de 2021.
Segundo reportagem da Agência Pública, Valente já pagou a Mendes R$ 143 mil, e pode ser obrigado a pagar mais R$ 175 mil se a editora da obra, Geração Editorial, não transferir a sua parte da indenização.
A posição da Abraji
Um levantamento da Abraji aponta que, até dezembro de 2021, decisões do STJ em quatro outros processos e decisões de tribunais estaduais de primeira e segunda instâncias em dez outros processos utilizaram a jurisprudência criada pelo STF no caso de Valente para a condenação e definição do valor de danos morais.
Em nota à Agência Pública, a entidade afirmou: "A Abraji considera a decisão do STF contra Rubens Valente um precedente perigoso para o regime legal e constitucional da liberdade de expressão no Brasil, porque impõe um dever de indenização muito grave para o exercício da liberdade de imprensa, sobretudo quando não se verifica nenhum abuso por parte do profissional. Sem mencionar os efeitos da autocensura não só sobre Rubens Valente, como também sobre outros jornalistas que desejem cobrir fatos de interesse público contra magistrados."
A Abraji também ingressou com uma petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), para que a entidade avalie o caso.
Recém-eleito presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o jornalista Octávio Costa também se pronunciou à Agência Pública sobre o tema: "Sem dúvida afeta a liberdade de imprensa; o jornalista fica intimidado pelo assédio judicial. Ninguém é contra o pedido de resposta, mas não pode ser abusivo, com conflito de interesses", afirmou. Ele também é réu em uma ação por danos morais movida por Mendes que pede indenização de R$ 150 mil.
Mendes foi procurado pela Agência Pública, disse que não se manifestaria sobre o caso e indicou o contato de seu advogado, que não retornou a pedidos de comentário.
Valente afirmou à Agência Pública que jamais ofendeu ou agrediu o ministro no livro, que a sua condenação é injusta e provocou um grande dano à sua vida pessoal e profissional, e que a considera "um atentado à liberdade de expressão e de informação". Seu advogado, Cesar Klouri, afirmou que o valor da indenização está muito acima do de casos semelhantes, provocará um rombo irrecuperável para um jornalista assalariado e serve como intimidação que limita a liberdade de imprensa.
Deutsche Welle