Arthur Lira |
Para conter o prejuízo eleitoral, Câmara prepara medida que susta reajustes de energia elétrica e põe em xeque cumprimento de contratos, situação que tende a desestimular investimentos
A proximidade das eleições rasgou a fantasia da defesa da responsabilidade fiscal que alguns políticos ainda vestiam. Depois que o ministro da Economia, Paulo Guedes, assentiu com a destruição do teto de gastos, âncora que atrelava o crescimento das despesas à inflação, perdeu-se todo o pudor que ainda era relativamente preservado. Agora, com um ímpeto que não se via havia anos e parecia superado na história brasileira, a Câmara quer impedir a aplicação de reajustes nas tarifas de energia neste ano.
A ideia surgiu por meio de um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) apresentado pelo deputado Domingos Neto (PSD-CE). Incomodado com o aumento médio de 24,88% nas tarifas da Enel Distribuição Ceará, o parlamentar achou por bem simplesmente sustar os efeitos da decisão que havia sido referendada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A proposta conta com apoio explícito do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para quem o texto teria o poder de “anular atos em geral” – ou seja, permitiria cancelar reajustes de distribuidoras em todo o País.
O aumento das tarifas de energia não configura insensibilidade da agência reguladora ou das distribuidoras, mas apenas a realidade de custos crescentes inerente ao setor elétrico, entre eles geração, transmissão e distribuição. Há, no entanto, uma parcela significativa desses gastos que aumenta ano a ano com a colaboração direta dos parlamentares. Numa marcha que beira a insensatez, deputados e senadores não hesitam em apoiar propostas que repassam ainda mais gastos para a conta de luz, por meio de emendas a projeto de lei ou medidas provisórias, mas, estranhamente, mostram-se indignados quando a conta de seus próprios atos começa a chegar.
O exemplo mais recente e escandaloso foi a construção de termoelétricas onde não há reservas de gás, gasodutos ou linhas de transmissão. Há, porém, muitos outros, como o lobby das empresas de painéis fotovoltaicos, que convenceu a maioria do Congresso – e também o presidente da República – de que obrigá-los a pagar a tarifa de conexão dessas estruturas na rede, como fazem todos os outros consumidores, seria o mesmo que “taxar o sol”. Ao Estadão, o presidente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), Paulo Pedrosa, comparou o apoio dos deputados ao projeto de decreto legislativo que susta reajustes a quem opta por “quebrar um termômetro que está apontando a febre”. Incrivelmente, 410 parlamentares votaram a favor da urgência da proposta, o que permite que ela seja pautada no plenário a qualquer tempo.
Longe de ser uma bondade, o texto é uma evidente intervenção na Aneel. Se aprovado, configurará incontestável quebra de contrato, gerará uma consequente guerra judicial e reduzirá a pó o interesse do setor privado em investir em infraestrutura no País. Ademais, a iniciativa é claramente inconstitucional, uma vez que a agência reguladora não descumpriu nenhuma lei ao aplicar os reajustes, requisito básico para dar embasamento a um PDL. Pelo contrário: o que o órgão fez foi repassar às tarifas tudo que o governo propôs e a que o Congresso deu aval, dentro de atribuições definidas por força de lei.
Lira e boa parte dos deputados sabem muito bem disso, de forma que o objetivo implícito da medida é outro. Não se trata de cancelar os reajustes, mas simplesmente arrumar um jeito de empurrá-los para 2023 e evitar danos políticos nas eleições de outubro. Nesse sentido, o setor elétrico tampouco pode reclamar, pois foram as próprias empresas que ensinaram o Congresso a pendurar os jabutis nas contas de luz por meio de emendas em benefício próprio e prejuízo de toda a sociedade. A Aneel tampouco tem moral para contestá-los, pois foi autora da ideia dos dois empréstimos bilionários que autorizaram verdadeiras pedaladas elétricas ao longo dos próximos anos. Pior: para não afrontar o Legislativo, a agência se recusou a calcular o rombo de várias dessas propostas antes que elas fossem votadas, uma de suas funções mais republicanas.
O Estado de São Paulo