Publicado em 25 de fevereiro de 2021 por Tribuna da Internet
Italo Nogueira
Folha
As mensagens trocadas pelo policial militar aposentado Fabrício Queiroz com a ex-mulher do miliciano Adriano da Nóbrega são as provas que podem permitir sobrevida à investigação do caso das “rachadinhas” no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Elas são as únicas obtidas de forma totalmente independente de relatório do Coaf (órgão federal de inteligência financeira), que ainda está sob risco de anulação em julgamento no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Se esse documento for considerado ilegal, uma investigação sobre Queiroz pode ser reaberta a partir dessas mensagens.
CONTAMINAÇÃO – As transações imobiliárias suspeitas de Flávio, reveladas pela Folha em janeiro de 2018, também poderiam ser usadas para uma eventual abertura de nova investigação em caso de anulação do relatório do Coaf pelo STJ. Contudo um arquivamento do procedimento sobre os imóveis do senador “contaminou” essa alternativa.
O filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro é acusado de liderar um esquema de “rachadinha” em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa, levado a cabo por meio de 12 funcionários fantasmas de 2007 a 2018, período em que exerceu o mandato de deputado estadual. Flávio foi denunciado em novembro de 2020 pela Promotoria fluminense pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele nega as acusações.
DECISÃO ANULADA – Na última terça-feira, dia 23, a Quinta Turma do STJ anulou a decisão que quebrou os sigilos bancário e fiscal de Flávio, Queiroz e outros investigados. Por 4 a 1, a maioria dos ministros entendeu que Flávio Itabaiana, juiz de primeira instância, não fundamentou a necessidade da medida.O futuro da denúncia contra Flávio no caso das “rachadinhas” ficou em xeque com a anulação da quebra dos sigilos, e a corte superior ainda avaliará outros questionamentos do filho do presidente Jair Bolsonaro, como a legalidade dos dados do Coaf que serviram de base para a abertura da investigação. O relatório do órgão federal descrevia a movimentação financeira de Queiroz considerada atípica em 2016.
Apesar das possíveis saídas para retomar a apuração em caso de derrotas nos tribunais superiores, todas estão passíveis de discussão jurídica pelo fato de os investigadores já terem conhecimento, na prática, do teor das provas a serem levantadas. “O juiz [que analisar um eventual novo pedido de quebra] vai precisar tomar um cuidado especial para ignorar as circunstâncias conhecidas do caso e se fundamentar em cima das evidências que poderão ser usadas”, afirma Celso Vilardi, advogado criminalista.
Especialistas afirmam que há vias judiciais para se obter nova quebra de sigilo. Mas a decisão do STJ contamina outras provas que não podem ser refeitas, como a apreensão de celulares e de documentos nas casas dos investigados. Para investigadores, elas corroboram a tese de “rachadinha” indicada pelos dados bancários. O Ministério Público do Rio ainda estuda como recorrer da decisão proferida.
SEM AUTORIZAÇÃO – Em relação ao relatório do Coaf, a defesa do senador afirma que ele contém um detalhamento semelhante ao de uma quebra de sigilo bancário, mas sem autorização judicial. O ministro do STJ João Otávio de Noronha já sinalizou concordar com essa tese. O relator, Félix Fischer, discorda.
O MP-RJ afirma ter seguido as regras de compartilhamento de informações com órgãos de inteligência. Se esse relatório for anulado, a decisão derrubaria todas as provas decorrentes dele. O documento de inteligência financeira não pode ser refeito a fim de reabrir a investigação.
Neste cenário, a única prova preservada do caso são as mensagens entre Queiroz e Danielle Mendonça da Costa, ex-mulher do capitão Adriano, miliciano morto numa operação policial na Bahia quando estava foragido. Ela foi assessora de Flávio de setembro de 2007 a novembro de 2018.
PRESTAÇÃO DE CONTA – As mensagens foram obtidas na Operação Intocáveis, que investigava a atuação da milícia em Rio das Pedras, comandada por Adriano. O celular de Danielle foi apreendido na ocasião. Em março de 2017, Queiroz diz a Danielle que enviará seu informe de rendimentos da Assembleia Legislativa do Rio. Em janeiro de 2018, pede para que a ex-assessora lhe informe a quantia depositada naquele mês para ele “prestar a conta”.
Neste período, em 2017 e 2018, os dois também falam sobre envio de cópia da declaração do Imposto de Renda de Danielle para Queiroz. O MP-RJ avalia que essas mensagens indicam que ela era uma “funcionária fantasma” com participação na “rachadinha”. Além disso, mostraria que Queiroz informava sobre os desvios “a outros integrantes da organização criminosa”.Um outro conjunto de mensagens ocorreu depois de dezembro de 2018, quando o jornal O Estado de S. Paulo divulgou dados do relatório do Coaf que menciona Queiroz, documento sob questionamento no STJ.
Nesta conversa, Queiroz pede para que Danielle tenha cuidado com quem fala no celular e envia uma foto da página do jornal para a interlocutora. No mesmo dia, Danielle conversa com o próprio Adriano sobre sua exoneração, ocorrida no mês anterior. Na conversa, o miliciano afirma que também contava com o dinheiro que ela recebia no gabinete, indicando a sua participação no esquema.
MENSAGENS APAGADAS – Em janeiro de 2019, Queiroz questiona se Danielle foi chamada para depor no MP-RJ. O PM aposentado deletou as mensagens, mas pelas respostas da ex-assessora os investigadores inferem que ela foi orientada a não prestar esclarecimento às autoridades.
Especialistas divergem sobre a possibilidade de uso das mensagens sobre a notícia do relatório do Coaf, caso ele seja considerado nulo pelo STJ. De acordo com o advogado Breno Melaragno, a conversa segue válida. Para ele, o que importa é a sua origem legal, e não o teor da conversa. “A causa que originou a prova é diversa do relatório do Coaf. Ela foi obtida numa investigação sobre milícias. Penso que será difícil o Judiciário interpretar o teor da conversa como ilegal”, disse ele.
O advogado Pierpaolo Bottini afirma, por sua vez, que o fato de a conversa só ter acontecido em razão da existência de uma prova ilegal, caso assim considere o STJ, a contamina. “Esse trecho da conversa só existiu em decorrência do relatório do Coaf. A anulação deste contamina a parcela dos diálogos que a ele fazem referência”, afirmou Bottini.