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J.R.GuzzoEstadão
Mesmo para os padrões de safadeza da Câmara dos Deputados do Brasil, de seus presidentes e de suas mesas diretoras, regularmente colocados entre os mais lamentáveis do planeta, é um exagero o que estão fazendo ali com o projeto de lei que acaba com uma das mais espetaculares aberrações da vida política nacional – o “foro privilegiado”. Trata-se, pura e simplesmente, de um insulto declarado aos 200 milhões de brasileiros.
Por meio desta fraude legal maciça, os parlamentares, ministros de Estado, governadores, juízes, procuradores e comandantes das Forças Armadas podem cometer o crime que quiserem, do roubo ao homicídio qualificado, sem ter de responder por nada isso diante da Justiça, como acontece com qualquer outro cidadão deste país.
FORO ESPECIAL – Seus casos são apreciados num “foro especial” – ou seja, em português claro, num tapetão onde basicamente eles julgam a si próprios e ninguém é condenado nunca. O remédio para essa alucinação está pronto. Mas o presidente da Câmara e as gangues que mandam no pedaço não deixam que ele seja aplicado.
O esforço para eliminar o “foro privilegiado”, o principal atrativo que a vida política brasileira oferece aos corruptos, membros de quadrilhas e delinquentes em geral, está sendo feito, acredite se quiser, desde o começo de 2013 – isso mesmo, há sete anos e meio.
Em maio de 2017, enfim, a emenda constitucional que desmancha o pior foco de impunidade em vigor na sociedade brasileira (sim, essa trapaça é um dos pontos capitais da nossa “Constituição Cidadã”) foi aprovada no Senado. Pela nova regra, o “foro especial” fica restrito ao presidente da República e mais uns poucos peixes graúdos. Todos os demais – coisa de 25.000 pessoas, ou por aí – perdem o direito de matar a mãe e ir ao cinema, como é hoje.
MAIA SENTOU EM CIMA – Só que a tentativa de moralização até agora não adiantou nada. Logo depois de aprovado pelos senadores, o projeto foi enviado para a votação na Câmara. Você já imagina o que aconteceu, não é? O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, enfiou a coisa numa gaveta – e, até hoje, três anos depois, não colocou a emenda em votação. Ou seja: continua tudo na mesma.
Como é possível impedir, durante três anos inteiros, a votação de um projeto que tenta demonstrar um mínimo de respeito pelo cidadão? Não há absolutamente nenhum motivo para isso que não seja a recusa em limitar a impunidade de que desfrutam hoje os políticos e o resto da manada descrita acima.
Rodrigo Maia custa ao contribuinte brasileiro mais de R$ 6,5 milhões por ano; você paga a casa de 800 metros quadrados que ele ocupa em Brasília, seus oito empregados domésticos, suas dezenas de funcionários, suas diárias de US$ 400 quando viaja ao exterior e mais um caminhão de coisas. O mínimo que poderia dar em troca seria trabalhar com alguma consideração por quem o sustenta. Mas ele não apenas se nega a trabalhar a favor; faz questão de trabalhar contra.
NA VIDA REAL – O “foro privilegiado” é um veneno. Não há nada mais hipócrita do que aparecer no jornal e na televisão para declamar enrolação “em defesa da democracia” e impedir que se tente moralizar um pouquinho a atividade política no Brasil. Mas assim é a vida real.
Maia foi acusado em 2017 de fazer parte da coleção de políticos comprados pela Odebrecht; a Justiça não chegou nem perto dessa história. Em 2019 foi denunciado pela Polícia Federal por corrupção passiva, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro; como tem foro privilegiado, a PF mandou tudo para o ministro Edson Fachin, do STF, que por sua vez passou a bola para a Procuradoria-Geral da República, que até hoje não fez nada. Não está ansioso em mudar coisa nenhuma.