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quarta-feira, dezembro 29, 2010

Um cálice de vinho tinto de sangue

Folhapress

Folhapress / Presídio Tiradentes (em primeiro plano), em São Paulo, onde Dilma ficou presa quase 3 anos Presídio Tiradentes (em primeiro plano), em São Paulo, onde Dilma ficou presa quase 3 anos
Armas e tortura


As marcas da resistência à ditadura contribuíram para Dilma, segundo colegas, se tornar uma pessoa “operacional”, principalmente após as sessões de tortura

29/12/2010 | 00:01 | Rosana Félix, enviada especial

Para quem militava ou participava da luta armada contra o regime militar, como Dilma Rousseff, a morte era vista como um caminho quase inevitável. Segundo colegas que a conheceram no passado, as marcas da resistência contribuíram para ela se tornar uma pessoa “operacional” – ou seja, destemida e muito exigente. Mas ela também é lembrada como uma pessoa doce e companheira, apesar das atrocidades sofridas nos porões da ditadura.

Ao longo de 1968, com o crescimento das ações armadas contra o governo e dos protestos exigindo a redemocratização, os militares, em vez de puxarem o freio, pisaram no acelerador. Em outubro daquele ano, a polícia invade o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP).

Arquivo Nacional

Arquivo Nacional / Reação dos militares contra as ações dos revolucionários Ampliar imagem

Reação dos militares contra as ações dos revolucionários

Torre das donzelas

Fama de má cozinheira

Dilma cumpriu pena no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Parece até um impropério afirmar isso, mas muitos ficavam aliviados quando chegavam ao local. Em comparação à Oban e ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a prisão era um lugar seguro. Não havia o terror e a selvageria dos torturadores.

As mulheres ficavam em uma ala separada, chamada de “Torre das Donzelas”. Em ambos os casos os prisioneiros se dividiam para fazer atividades corriqueiras. Mas, coitadas das companheiras quando Dilma ia para a cozinha. Segundo o livro de memórias Tiradentes, um presídio da ditadura, a fama dela não era nada boa.

“Só não éramos piores do que a famosa dupla Dilma e Cida Costa”, diz Eleonora Menicucci de Oliveira no livro. Outra coautora do livro, Márcia Mafra, relata que felizmente estava aprendendo a lidar com o fogão, “porque senão nosso ‘turno cozinhífero’ seria tão trágico para o estômago e o paladar das outras quanto o dia da dupla Dilma-Cida Costa. Você vai conhecê-las, são pessoas incríveis, mas não aceite um convite delas pra jantar.”

Mas Dilma também é lembrada pelo companheirismo. “Quando cheguei, recebi de Joana e Dilma, duas antigas amigas de militância em Belo Horizonte, um imenso afeto e carinho que me ajudou a segurar as ‘barras emocionais’”, diz Eleonora.

No dia a dia, os presos também faziam muito artesanato, artes plásticas ou jogavam. Os familiares providenciavam livros e notícias sobre a resistência e o governo militar. Os presos, de várias correntes de esquerda, também debatiam muito. O período também serviu para um exame de consciência e uma autocrítica da luta armada.

Há um esboço de reação oficial na capital federal. O deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB) faz discursos contra a ditadura e o governo pede licença ao Congresso para processá-lo, o que não ocorre, surpreendentemente. O então presidente, general Artur da Costa e Silva, edita o Ato Ins­­­titucional n.º 5, em 14 de dezembro de 1968, mesma data em que Dilma completava 21 anos. Começavam os Anos de Chumbo no Brasil.

O ato fechou o Congresso, cassou direitos políticos e institui a censura à imprensa. Qualquer cidadão poderia ser preso, sem maiores explicações, e ficar incomunicável por até dez dias. Se­­gundo o jornalista Elio Gaspari, no livro A Ditadura Envergonhada, “esses prazos destinavam-se a favorecer o trabalho dos torturadores”. Quase 70 professores foram expulsos de universidades – dentre eles, Fernando Henrique Cardoso e Caio Prado Júnior. Nem os artistas foram poupados. Marília Pêra, Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam nas primeiras levas dos camburões com destino às carceragens da polícia. Aproximadamente 340 políticos tiveram seus diretos políticos suspensos. O Congresso foi reaberto em outubro de 1969, para eleger o general Emílio Garrastazu Médici à Presidência.

Wanda

Durante a guerrilha, Dilma usou vários codinomes, como Luiza, Wanda, Estela, Marina, Maria e Lúcia, entre outros. Mas isso não foi suficiente para mantê-la no anonimato. Ela e o marido moravam no Conjunto Solar, em uma região central de Belo Horizonte. Ela havia concluído o segundo ano do curso de Economia. Mas, em janeiro de 1969, após um assalto a banco, diversos dirigentes do Comando de Libertação Nacional (Colina) foram presos. Nos dias seguintes a polícia fez uma investida contra a organização, e oficiais foram mortos. A reação militar foi feroz, com muitas prisões e ameaça de fuzilamento. Dilma e Galeno voltaram ao apartamento pelo menos mais uma vez, para destruir documentos, e, depois de algumas semanas, foram para o Rio de Janeiro. Em março de 1969, o apartamento do Solar foi vistoriado pela polícia.

Segundo diversos relatos, Dilma não participava das ações armadas. Ela ficava nos bastidores, planejando. Mas recebia treinamento militar, com aulas de tiro, explosivos e confrontos abertos. “Ela nunca foi das mais militares. Eu também não. A Dilma sempre valorizou muito a mobilização social e nunca defendeu o foco guerrilheiro puro, de ir para o mato com arma”, avalia o antigo mentor, Apolo Heringer Lisboa, líder da Política Operária (Polop).

No Rio de Janeiro, continuou a trabalhar nos bastidores, segundo relatos. A Colina fundiu-se com a Vanguarda Popular Revolucio­­­nária (VPR), resultando na VAR-Palmares. Conforme consta no processo movido pelo governo militar contra Dilma na época da ditadura, ela zelava por armamento pesado, como 58 fuzis Mauser, 4 metralhadoras Ina, 2 revólveres e 3 carabinas.

Entre munições e reuniões, conheceu um novo amor, o advogado Carlos Franklin Paixão de Araújo. Posteriormente, comunicou Galeno que estava com outra pessoa – segundo relatos, o casamento não ia bem há algum tempo. Ele próprio já deu declarações de que ela era “mais intelectual” do que ele.

A ditadura também tinha o intelecto de Dilma em alta conta. Em denúncia feita pelo Ministério Público Militar, ela é descrita como “uma pessoa de dotação intelectual bastante apreciável” e “figura feminina de expressão tristemente notável”. Também foi chamada de “Joana D’Arc da subversão”.

Ela também ajudou a planejar aquele que foi o mais bem-sucedido crime da resistência brasileira: o roubo ao cofre do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros – um dos políticos conhecidos como “rouba mas faz”. O sobrinho de Ana Benchimol Capriglio­­­ni, amante de Adhemar, repassou as coordenadas para os integrantes da VAR-Palmares. O cofre foi roubado no Morro Santa Teresa, no Rio de Janeiro, e rendeu a fortuna de US$ 2,6 milhões. Parte do dinheiro teria ido para a Suíça, mas o destino certo nunca foi sabido.

Segundo Apolo, o roubo “deturpou” a realização do grupo. O dinheiro precipita tudo, e apressou nossa destruição. Aí rachamos. Voltou a ser a VPR e a Dilma ficou na Palmares. Logo depois foi presa.

O terror

A detenção ocorreu em 16 de janeiro de 1970, em um bar da Rua Augusta, em São Paulo, onde costumava encontrar um colega de guerrilha, que havia sido preso e confessado o ponto de encontro com lideranças da esquerda.

Segundo depoimento concedido em maio de 1970, Dilma disse que, entre janeiro e fevereiro daquele ano, foi torturada por 22 dias seguidos, na sede da Oban (Operação Bandeirante). Foi submetida a choques, pau de arara e maus-tratos morais e psíquicos. A denúncia foi feita à Justiça Militar, em Juiz de Fora, em maio daquele ano. Ela enfrentou processos em diferentes estados e foi condenada. Mas a pena foi reduzida pois as acusações eram as mesmas. No final de 1973, saiu da cadeia.

O governo ditatorial não admitia a existência de tortura. Um material ilustrativo é o livro Os anos de chumbo a repressão (disponível em http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/13.pdf), composto por depoimentos de militares sobre a época.

Em 2003, em uma entrevista ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho para atualização do livro Mulheres que foram à luta armada, Dilma relembrou a época. “Levei muita palmatória. Depois da palmatória, eu fui pro pau de arara. Fizeram choque, muito choque, mas muito choque. Eu lembro, nos primeiros dias, que eu tinha uma exaustão física, que eu queria desmaiar, não aguentava mais tanto choque. Eu comecei a ter hemorragia.”

Fonte: Gazeta do Povo

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