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quarta-feira, dezembro 22, 2010

O Lula que ficará na memória de cada um

“Sua biografia combina de tal forma o inédito com o imponderável que, tirante a aposentadoria política (algo impensável), qualquer especulação em relação ao seu futuro soa crível”






Sylvio Costa*
Tomando emprestadas as palavras usadas pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) para se referir ao ex-ministro José Dirceu, ele inspirou – e inspira – em alguns “os instintos mais primitivos”. Entre outras coisas, foi muitas vezes chamado de “anta”, “apedeuta” e “analfabeto”. É admirado por outros tantos por razões e de formas bastante diversas.



Na base da pirâmide social, seu prestígio pode ganhar ares de devoção religiosa, e ele é saudado vez por outra como uma espécie de Messias, protetor dos pobres e desamparados, ao qual tudo se deve perdoar. No topo, manifestações de reconhecimento com frequência se fazem acompanhar de conjunções adversativas. “Ele fez um bom governo, mas também, pô, encontrou o terreno já preparado por Fernando Henrique”. Ou então: “O cara não estudou, aliou-se ao que existe de pior na política, mas tem uma intuição e uma capacidade de comunicação extraordinária”. Ou ainda: “É um político demagogo e medíocre. Porém, terminou fazendo um bom governo porque teve a sorte de pegar uma conjuntura interna e externa favorável”.



Ex-pau-de-arara, ex-engraxate, ex-metalúrgico, ex-sindicalista, Lula se tornará ex-presidente da República no próximo dia 1º deixando para historiadores e cientistas sociais o desafio de decifrar uma das mais fascinantes personalidades políticas do Brasil das últimas décadas. Há vários Lulas, e cada um guardará na memória o Lula que mais lhe marcou, ou convém.

O Lula que brilhou na cena internacional, ora ajudando a viabilizar a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, ora sendo enaltecido por estadistas estrangeiros e pelos mais importantes veículos da mídia global. O Lula que frustrou democratas e defensores dos direitos humanos pelo mundo afora ao se omitir em relação às crueldades de ditadores amigos, em Cuba, no Irã ou alhures. O Lula que se disse traído e que condenou os métodos usados para a compra de apoio político, no auge da crise do mensalão, em 2005. O Lula que agora promete empreender uma cruzada nacional para provar que o mensalão não existiu. O Lula que fez o país avançar na economia e na área social. O Lula que desdenhou preocupações éticas antes preconizadas pelo PT para dar respaldo a aliados colocados sob suspeita, fossem eles Sarney, políticos transformados em réus em processos criminais ou parlamentares flagrados na vexatória farra das passagens aéreas.

Sua biografia combina de tal forma o inédito com o imponderável que, tirante a aposentadoria política (algo impensável), qualquer especulação em relação ao seu futuro soa crível. O presidente mais popular, e certamente um dos mais atacados, da história do país. O político dado como morto na crise política de 2005 e que deixa a Presidência da República com mais de 80% de aprovação. O homem que deixou Caetés (PE) para fugir da fome e que governou a república por oito anos, fazendo a sucessora e mantendo suas digitais em grande parte do (velho) novo ministério. O primeiro presidente operário e sem curso superior trabalhará para se tornar também o primeiro a se eleger – em 2014 – pela terceira vez pelo voto direto? Ele e os amigos dificilmente admitirão, mas alguns sinais apontam para essa direção.

Que o digam os planos que ele anunciou até agora para depois do dia 1º. A cruzada contra o mensalão pode vitaminar suas relações com o PT. A criação de um instituto e a prometida pregação em favor da reforma política podem mantê-lo em evidência e no centro das articulações. Ou optará Lula por ser a eminência parda do governo Dilma? É um caminho arriscado, já que a criatura precisará agora de liberdade para conquistar espaço próprio, mas quem pode assegurar que ele está fora de cogitação? Será o governo de Dilma Rousseff uma nova, e talvez não a derradeira, etapa da era Lula? Ou o presidente, contrariando as especulações hoje predominantes, passará a priorizar a atuação na arena internacional?

Perguntas desse tipo não têm neste momento respostas conclusivas. Mais fácil é reconhecer os pontos fortes e as fragilidades dos oito anos de governo Lula. Entre os destaques positivos, um vasto rol de indicadores econômicos e sociais, que incluem a elevação real do salário mínimo, o aumento do padrão de vida de milhões de brasileiros e o crescimento da economia e dos empregos sem colocar em risco a estabilidade de preços alcançada na era FHC. Manteve-se assim o que o governo antecessor produziu de melhor, o controle da inflação, acrescentando-se novos ingredientes que tornaram mais efetivos os resultados obtidos em termos de redução das desigualdades. É falso, portanto, afirmar que Lula simplesmente colheu o que Fernando Henrique plantou.

Frustrante, contudo, foi o desempenho do PT e do governo Lula em áreas nas quais eles despertavam maior esperança de transformações, como saúde e educação. No plano ético e político, não apenas se manteve a tradição recente (do Brasil pós-ditadura militar) de regar a maioria governista no Parlamento com o varejo do fisiologismo e da troca de favores como também se procurou desqualificar qualquer tentativa de inaugurar novos padrões de comportamento político. A maioria do PT era contrária, por exemplo, à fundamental Lei da Ficha Limpa.

Com outras palavras, pode-se dizer que Lula foi no governo bem melhor do que sempre alardeou a oposição, mas também não foi tão bom quanto tenta demonstrar a mistificação petista e lulista.

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Uma boa dica para quem deseja refletir mais sobre a era Lula é o já antológico artigo publicado em dezembro de 2009 pelo cientista político e jornalista André Singer na revista do Cebrap. Embora tenha atuado como porta-voz de Lula e não possa ser visto como antipetista, Singer faz uma análise equilibrada e até certo ponto crítica do lulismo, que ele associa ao conservadorismo do “subproletariado” beneficiado pelos ganhos econômicos assegurados às parcelas mais pobres da população brasileira a partir de 2003. Entre aqui para ler o estudo, denominado “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”.

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Estarei nas próximas semanas de férias. A coluna voltará a ser publicada no dia 19 de janeiro. Boas festas e um super 2011 para todos!




* Jornalista, criou e dirige o site Congresso em Foco. Mais informações na seção Quem somos.



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Fonte: Congressoemfoco

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