Em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, controlador geral da União diz que o atual sistema de elaboração do orçamento é o principal responsável pela existência dos esquemas de desvio de verbas
“O parlamentar, ao elaborar a sua emenda, já tem em mente, ou mesmo indica, quem receberá o recurso”, diz Hage, para quem os desvios de dinheiro encontram seu principal caminho nas emendas
Rudolfo Lago e Edson Sardinha
Idealizado pelo ex-ministro Waldir Pires, o sistema de auditorias por sorteios nos municípios serviu para desbaratar nos últimos anos três grandes esquemas de desvio de verbas públicas federais. O primeiro foi a máfia das ambulâncias, uma organização nacional que superfaturava a compra desse tipo de veículos pelas prefeituras. O segundo foi o esquema João de Barro, de desvio de dinheiro destinado a habitações populares e saneamento. Agora, foi a partir dos sorteios que se começou a verificar a existência de uma organização que cria instituições fantasmas, superfatura – ou, simplesmente, não realiza – festas para desviar recursos do Ministério do Turismo.
Além do fato de terem sido descobertos a partir das auditorias por sorteio realizadas pela equipe da Controladoria Geral da União (CGU), os três esquemas têm uma outra coisa em comum: o dinheiro desviado provém de emendas parlamentares individuais ao Orçamento Geral da União. Num conluio que envolve parlamentares, prefeituras e as instituições que realizarão as obras e eventos, o dinheiro público vai sistematicamente sendo desviado para bolsos alheios.
“Emendas pulverizam o dinheiro público em pequenas obras de interesse público menor. E fazem o parlamentar exercer papel de vereador”
“Sou totalmente contrário à existência das emendas orçamentárias individuais”, fulmina, em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, o ministro da Controladoria Geral da União, Jorge Hage. “Primeiro, tais emendas pulverizam o dinheiro público em pequenas obras de interesse público menor. Em segundo, fazem com que o parlamentar federal exerça um papel de vereador, quando ele deveria estar preocupado com os grandes debates nacionais. E, finalmente, porque tem sido esse o principal caminho para os desvios de dinheiro público que verificamos”, diz Hage.
Na verdade, não é de hoje que se conhece o potencial de devastação das verbas públicas que têm as emendas individuais ao orçamento. Em 1993, isso já tinha sido verificado pela CPI dos Anões do Orçamento. Num primeiro momento, por determinação da CPI, acabou-se com as emendas individuais. Mas, depois, elas voltaram com força total. Hoje, viraram a parte sagrada da discussão do orçamento no Congresso. Cada parlamentar possui uma cota de R$ 13 milhões para apresentar as suas emendas. E, pelo acordo tácito feito no Congresso, elas são acatadas no relatório final sem discussão. O resultado final dessa festa é que, nos ministérios preferidos dos parlamentares, a maioria do orçamento para investimentos acaba sendo formado pelo dinheiro das emendas individuais. No caso do Ministério do Turismo, por exemplo, se o ministro resolvesse se recusar a liberar recursos para as emendas, ele praticamente nada executaria durante o ano.
“Esses três casos maiores que verificamos de desvio de verbas a partir das emendas têm muitos pontos em comum. E a verdade é que, infelizmente, têm também vários personagens em comum”, diz Jorge Hage, sem citar nomes de parlamentares. “Essa não é a nossa tarefa. Essa é tarefa do Ministério Público e da Polícia Federal, que passa a trabalhar a partir dos indícios que encontramos”, completa. O que se verifica é que o parlamentar, ao elaborar a sua emenda, já tem em mente (ou mesmo indica) quem receberá o recurso. A prefeitura contrata tal empresa ou instituição. A obra é superfaturada ou feita de forma maquiada para sobrar recursos. E assim segue o esquema.
No caso da máfia das ambulâncias, o esquema tinha caráter nacional. Empresas dividiram o país. Em cada região, as ambulâncias eram compradas de uma determinada empresa, sempre com superfaturamento. Na João de Barro, o esquema foi mais concentrado em Minas Gerais. E, “Infelizmente, estamos longe de conseguir chegar à necessária reformulação orçamentária que acabaria com esses expedientes”
agora, verifica-se uma concentração do esquema do Turismo em Goiás. No caso do Turismo, Jorge Hage verifica uma volta a um procedimento semelhante ao que era praticado na década de 90 pelos anões: a criação de entidades fantasmas. Na época, para receber o que chamavam de subvenções sociais, agora, para, supostamente, realizar eventos. Para tanto, são criadas Organizações Não-Governamentais (ONGs) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips).
Fábrica de Oscips
“Ficou algo tão lucrativo que descobrimos a existência de fábricas de ONGs e Oscips”, conta Hage. A fábrica de ONGs e Oscips descoberta fica na cidade de Alto Paraíso, em Goiás, até então um pequeno município próximo à Chapada dos Veadeiros famoso por abrigar comunidades hippies e esotéricas. Ao fazer um levantamento nacional das Oscips, a CGU verificou a existência de 5,4 mil organizações desse tipo em todo o país. Cidades e regiões maiores tinham, naturalmente, mais Oscips. A maior concentração ficava em São Paulo: 400 Oscips. Foi nessa verificação que Alto Paraíso chamou a atenção: um município de apenas 6,8 mil habitantes registrava a existência de 11 Oscips.
Mais estranha ficou a coisa quando se verificou que todas elas tinham como presidente a mesma pessoa, Aline Aparecida Brazão. Mais um aprofundamento verificou que Aline era ou tinha sido presidente de nada menos que 45 diferentes Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.
Ao lado de Aline, a CGU encontrou uma empresa, a Vieira Consultoria, que em seu site anuncia sem qualquer constrangimento: “Oscip já aprovada – Compre sua Oscip já aprovada e comece a operar imediatamente”. Com uma identidade falsa, os auditores da CGU entraram em contato com Antônio Vieira, o diretor da Vieira Consultoria. “Sr. Vieira, conforme combinado por telefone, peço-lhe que me envie os dados da Oscip e a minuta do contrato de transferência o mais rápido possível (...). Se possível, me repasse novamente o procedimento para a transferência, tais como valores, formas de pagamento (...). Ah, se puder, me passe o contato da associação que o senhor mencionou que presta consultoria para a captação de recursos”, diz o e-mail que a CGU enviou para Vieira, com o nome de Evandro Morais.
“Prezado senhor, temos uma única Oscip à venda, por R$ 22 mil à vista”, respondeu Antônio Vieira. “Ou seja, virou um nicho de mercado”, conclui Jorge Hage. “ONG é mais barato, Oscip é mais caro”, detalha o ministro. “Infelizmente, estamos longe de conseguir chegar à necessária reformulação orçamentária que acabaria com as emendas individuais e daria fim a esses expedientes”, diz Hage. “Assim, o que temos de ir fazendo é aumentar a fiscalização e eliminar as brechas pelas quais a verba federal se desvia”.
Não é fácil. Hage reconhece que a destinação de dinheiro federal para festas e eventos é algo de “dificílimo acompanhamento”. Mas regras estão sendo criadas para diminuir as possibilidades de fraude. Primeiro, a fiscalização in loco dos eventos sustentados com verbas do Ministério do Turismo aumentou de 15% para 35%. Os cachês dos artistas contratados foi limitado em R$ 80 mil. E os parlamentares têm sido obrigados a encaminhar um documento no qual se comprometem com a idoneidade das instituições indicadas por eles para receber os recursos. Assim, o deputado Sandro Mabel (PR-GO) comprometeu-se ao destinar R$ 300 mil para que a Premium Avança Brasil fizesse o Circuito Goiano de Rodeio. E o deputado Laerte Bessa (PMDB-DF) avalizou o Instituto Educar e Crescer ao dotá-lo de R$ 200 mil para a promoção do Turismo interno. “Eles não podem alegar que não conheciam as entidades. O governo tem os documentos nos quais eles indicam as instituições”, alerta Hage.
A partir de janeiro do ano que vem, não será liberado dinheiro para entidades que não comprovem pelo menos três anos de serviços prestados sem qualquer irregularidade. Trata-se de uma portaria de 2008, que agora será finalmente posta em vigor.
Isso eliminará a fraude? Infelizmente, não. “O que se verifica é que, cada vez que se descobre um esquema e se fecham suas portas, migra-se para um outro esquema, migra-se para a exploração de outra brecha”, comenta o ministro. A solução ideal seria o fim das emendas individuais. Que os parlamentares passassem a discutir grandes investimentos e obras nacionais e não perdessem tempo com as emendas paroquiais. Como, por enquanto, isso não acontecerá, o jeito é apertar a fiscalização.
Fonte: congressoemfoco
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