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ADPF 144
01. Manifestei-me sobre esta mesma matéria1 em
votos proferidos no TSE. É também contra a
interpretação que o colegiado então consagrou por
maioria que esta ADPF foi proposta, de modo que se
justifica a alusão que passo a fazer aos argumentos
desenvolvidos nesses votos, ora acrescidos de mais
alguns subsídios.
Afastei naquela ocasião, com as vênias de estilo, o
entendimento do Ministro Carlos Britto, segundo o
qual os temas da elegibilidade e da inelegibilidade
compõem-se em bloco ou subconjunto específico dos
direitos e garantias individuais, o dos direitos
polí ticos. Esse bloco seria distinto, em perf il polí ticof
ilosóf ico, do bloco dos direitos e deveres individuais e
coletivos --- onde predomina o princípio da dignidade
da pessoa humana --- e do bloco dos direitos sociais -
-- onde prevalece o princípio dos valores sociais do
trabalho.
No bloco dos direitos polí ticos predominariam os
princípios da soberania popular e da democracia
representativa.
1 Art igo 14, § 9º da CB: “§ 9º. Lei complementar estabelecerá outros
casos de inelegibi l idade e os prazos de sua cessação, a f im de proteger
a probidade administrat iva, a moral idade para exercício de mandato,
considerada a vida pregressa do candidato, e a normal idade e
legi t imidade das eleições contra a inf luência do poder econômico ou o
abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta
ou indireta” (redação dada pela Emenda Const i tucional de Revisão nº 4,
de 1994) .
2
Os dois primeiros subsistemas gravitariam em torno
de princípios que existem para --- dicção do Min.
Carlos Britto --- “se concretizar, imediatamente, no
individualizado espaço de movimentação dos seus
titulares”. Os direitos de que aqui se trata beneficiam
imediatamente os seus titulares. No bloco dos direitos
políticos não; esses consubstanciam deveres
comprometidos com a afirmação da soberania popular
e a autenticidade do regime representativo.
Em síntese, essa é a construção doutrinária
desenvolvida pelo Min. Carlos Britto, que justificaria
peculiar interpretação de alguns textos da
Constituição --- o inciso III do artigo 15 e o inciso
LVII do artigo 5º, v.g., disporiam no sentido que
dispuseram somente quando o candidato respondesse
por um ou outro processo penal; quando respondesse
reiteradamente a inúmeros deles as suas disposições
não prevaleceriam.
02. Discordei, permaneço a discordar desse
entendimento. A explicitação teórica de distintos
blocos de preceitos não afeta a normatividade
constitucional, seja para potencializá-la, seja para
torná-la relativa.
A uma porque o discurso sobre o direito não
determina o discurso do direito --- o discurso do
direito é para prescrever direta e incisivamente, sem
expansões. O discurso sobre o direito é um meta3
discurso, conformado pelo discurso do direito. Aquele
não o coloniza.
A duas --- e tenho insistido quase excessivamente
nisto --- porque não se interpreta a Constituição em
tiras, aos pedaços, mas sim na sua totalidade. Uma
porção dela não prevalece sobre outra quando a
interpretamos. A lógica da Constituição é incindível.
A três porque sua interpretação está sujeita a
determinados limites, sem o que será transformada
em prática de subjetivismo.
03. A suposição de que o Poder Judiciário possa, na
ausência de lei complementar, estabelecer critérios de
avaliação da vida pregressa de candidatos para o fim
de definir situações de inelegibilidade importaria a
substituição da presunção de não culpabilidade
consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição
("[n]inguém será considerado culpado até o trânsito
em julgado de sentença penal condenatória") por uma
presunção de culpabil idade contemplada em lugar
nenhum da Constituição (qualquer pessoa poderá ser
considerada culpada independentemente do trânsito
em julgado de sentença penal condenatória).
Essa suposição não me parece plausível.
04. Recordo, a esta altura, o voto, muito lúcido, do
Ministro Ari Pargendler quando a matéria foi
apreciada no TSE.
4
O rol das inelegibilidades é definido pela Constituição
como uma das matérias reservadas à lei
complementar. O artigo 1º, I da Lei Complementar n.
64/90 exige que a inelegibilidade resulte de sentença
transitada em julgado; excepcionalmente, no caso da
rejeição de contas relativas ao exercício de cargos ou
funções públicas por irregularidade insanável,
privilegia a decisão irrecorrível do órgão competente,
salvo se a questão houver sido ou estiver sendo
submetida à apreciação do Poder Judiciário.
O voto do Ministro Leitão de Abreu no RE 86.297 ---
voto que o Min. Ari Pargendler rememorou --- é
também exemplar: apenas o trânsito em julgado de
uma sentença condenatória, seja pelo cometimento de
crime, seja pela prática de improbidade
administrativa, pode impedir o acesso a cargos
eletivos.
Viver a democracia, isso não é gratuito. Há um preço
a ser pago por ela; em síntese, o preço do devido
processo legal.
05. O artigo 1º, I, n da Lei Complementar n. 5, de 29
de abril de 1970, tornava inelegíveis para qualquer
cargo eletivo os que respondessem a processo judicial
instaurado por denúncia do Ministério Público
recebida pela autoridade judiciária competente.
Tempos duros e sofridos, a democracia ultrajada,
quando bastava a denúncia do Ministério Público,
recebida pelo juiz, para tornar inelegível o cidadão. A
5
inconstitucionalidade do preceito veiculado nessa
alínea n foi afirmada pelo TSE, no julgamento do
Recurso n. 4.4662, quando o Ministro Xavier de
Albuquerque proferiu voto antológico.
A Lei Complementar n. 42, de 1º de fevereiro de 1982,
alterou o texto da alínea3. Passaram a ser inelegíveis
os condenados, “enquanto penalmente não
reabilitados”. Ainda que o TSE e mesmo o STF tenha
titubeado na aplicação do preceito, é oportuna a
transcrição de observação do Ministro da Justiça, em
reunião da Comissão Mista do Congresso Nacional,
em 7 de outubro de 19814. Respondendo a afirmação
de que a lei seria imperfeita por falar simplesmente
em condenados, reclamando o acréscimo da expressão
“por sentença transitada em julgado”, o Ministro
observou: “Não é preciso, pois não existe meio
condenado, existe condenado”. E mais adiante:
“’Condenado’ é aquele ‘condenado por sentença
transitada em julgado’”.
06. Isso é, para mim, de uma clareza sem par. O § 9º
do artigo 14 da Constituição determina seja
considerada a vida pregressa do candidato. Ao fazê-lo
refere o que aconteceu antes do ato que a ele se
imputa, refere o quanto possa contribuir para a
2 Acórdão n. 5.864, de 23.09.76, relator designado Ministro Lei tão de
Abreu, in Bolet im Elei toral , n. 302, p. 720.
3 Sobrevieram as Leis Complementares ns. 64, de maio de 1990, e 81,
de 13 de abri l de 1994.
4 Diário do Congresso Nacional (Seção I I ) , 16.01.1982, p. 295.
6
apreciação do seu caráter, tudo quanto possa ser
expressivo da sua índole moral, psíquica e social.
Ao dizer que a lei complementar estabelecerá outros
casos de inelegibilidade a fim de proteger a
moralidade para o exercício do mandato, “considerada
a vida pregressa do candidato”, o preceito
constitucional impede que a moralidade para o
exercício do mandato venha a ser ponderada a partir
da consideração de algum ato episódico, isolado ou
mesmo acidental envolvendo o candidato. Não
autoriza a criação de caso de inelegibilidade ancorada
na avaliação da vida pregressa do candidato, mas sim
que a moralidade do candidato para o exercício do
mandato seja ponderada, em cada caso, desde a
consideração da sua vida pregressa, do todo que ela
compõe. A proteção da moralidade do candidato para
o exercício do mandato não prescinde da ponderação
desse todo, isso é que afirma, em termos de dever ser,
a Constituição. É bom que se diga, mais uma vez, que
ninguém está autorizado a ler na Constituição o que
lá não está escrito, prática muito gosto dos neo e/ou
pós-positivistas, gente que reescreve a Constituição
na toada de seus humores.
07. - Permito-me afirmar, ademais, que o Poder
Judiciário não está autorizado a substituir a ética da
legalidade por qualquer outra.
Não hão de ter faltado éticas e justiça à humanidade.
Tantas éticas e tantas justiças quantas as religiões,
7
os costumes, as culturas, em cada momento
histórico, em cada recanto geográfico. Muitas éticas,
muitas justiças. Nenhuma delas, porém, suficiente
para resolver a contradição entre o universal e o
particular, porque a idéia apenas muito dificilmente é
conciliável com a realidade.
A única tentativa viável, embora precária, de
mediação entre ambas é encontrada na legalidade e
no procedimento legal, ou seja, no direito posto pelo
Estado, este com o qual operamos no cotidiano
forense, chamando-o “direito moderno”, identificado à
lei. A cisão enunciada na frase atribuída a Cristo ---
“a César o que é de César, a Deus o que é de Deus” ---
torna-se definitiva no surgimento do direito moderno,
direito do modo de produção capital ista, direito posto
pelo Estado, erigido sobre uma afirmação a atribuirse
a CREONTE, ainda que não formulada exatamente
nessas palavras: “Pref iro a ordem à justiça”. No direito
moderno se opera a separação absoluta entre posto e
pressuposto, entre lex e ius.
08. - É certo que o temos, o direito moderno,
permanentemente em crise, mas o que se passa agora
é ainda mais grave porque --- ao mesmo tempo em
que se pretende substituir as suas regras e princípios
por outras, descoladas da eficiência ou de alguma
distinta vantagem econômica --- a sociedade como
que já não lhe dá mais crédito e inúmeras vezes se
precipita na busca de uma razão de conteúdo,
8
colocando-nos sob o risco de substituição da
racionalidade formal do direito [com sacrifício da
legalidade e do procedimento legal] por uma
racionalidade construída a partir da ética (qual
ética?!), à margem do direito.
A sociedade, insatisfeita com a legalidade e o
procedimento legal, passa a nutrir anseios de justiça,
ignara de que ela não existe em si e de que é
incabível, como observara EPICURO5, discutirmos a
"justiça" ou "injustiça" da norma produzida ou da
decisão tomada pelo juiz, visto que nem uma, nem
outra ["justiça" ou "injustiça"], existem em si; os
sentidos, de uma e outra, são assumidos
exclusivamente quando se as relacione à segurança
[segurança social], tal como concebida, em
determinado momento histórico vivido por
determinada sociedade. Por isso mesmo é que, em
rigor, a teoria do direito não é uma teoria da justiça,
porém, na dicção de HABERMAS6, uma teoria da
prestação jurisdicional e do discurso jurídico.
09. - É possível e desejável, sim, que o direito, em
sua positividade, seja interpelado criticamente, à
partir de conteúdos éticos e morais nascidos da luta
social e política. Esta luta se dá alias, desde o
advento da modernidade, com o propósito de realizar,
5 - In PAUL NIZAN - Démocr i te Épicure Lucrèce - les matérial istes de
l 'ant iqui té ( textes choisis) , Ar léa, Paris, 1.991, p. 151.
6 - HABERMAS, JÜRGEN - Fakt izi tät und Gel tung, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 1.992, p. 241.
9
para o maior número, as promessas de liberdade, da
igualdade e fraternidade. Outra coisa é a pretensão
de substituir-se o direito pela moralidade, o que, na
prática, significa derrogar as instituições do Estado
de direito em proveito da vontade e do capricho dos
poderosos ou daqueles que os servem.
10. - Estranhas e sinuosas vias são trilhadas nessa
quase inconsciente procura de ius onde não há senão
lex.
Uma delas se expressa na produção multiplicada de
textos sobre conflitos entre princípios e entre valores,
o que em geral faz prova de ignorância a respeito da
distinção entre o deontológico e o teleológico.
Outra, na banalização dos “princípios” [entre aspas]
da proporcional idade e da razoabil idade, em especial
do primeiro, concebido como um “princípio” superior,
aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que
conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de
"corrigir" o legislador, invadindo a competência deste.
O fato, no entanto, é que proporcional idade e
razoabil idade nem ao menos são princípios --- porque
não reproduzem as suas características --- porém
postulados normativos, regras de
interpretação/aplicação do direito.
Aliás, algumas vezes me detenho, perplexo, indagando
a mim mesmo como terá sido possível aos nossos
juízes definir normas de decisão nos anos anteriores
10
à década dos noventa, quando ainda a distinção entre
princípios e regras não havia sido popularizada.
A racionalidade formal do direito moderno, direito
positivo, direito posto pelo Estado, não pode --- por
certo não é fácil dizê-lo; dizê-lo exige serenidade e
seriedade --- não pode ser substituída por uma
racionalidade de conteúdo que, fatal e
irremediavelmente, será resolvida, no bojo da díade
violência/direito, pelo primado do primeiro termo.
11. - Isso não significa, contudo, esteja eu a afirmar
que o direito moderno seja aético, senão que a sua é a
ética da legalidade.
A ética, do ponto de vista formal, é um conjunto de
postulados vazios e indeterminados; vale dizer, é
abstrata. Sua efetividade, sua concretude provém do
mundo exterior, objetivando-se nos comportamentos
que um determinado grupo social entenda devam ser
adotados diante da realidade.
Muitos grupos, muitas éticas --- isto é, díspares
manifestações desta última no concreto. Um desses
grupos é a sociedade civil, o mais amplo deles. Entre
nós, no nosso tempo, a ética adotada para reger as
relações reguladas pelo chamado direito moderno é a
ética de legal idade.
Note-se bem --- e isso é o que estou a sustentar ---
note-se bem que o agir humano por ela conformado
não é, necessariamente, aquele que seria determinado
por uma ética fundada na busca de justiça. Repita-se:
11
o universal é irredutível ao concreto --- a idéia é
quase nunca conciliável com a realidade.
12. - Por isso, talvez, há no ar uma vontade de
superação da cisão entre o direito e moral.
A importação de valores éticos para dentro do
horizonte do jurídico permitiria qualificar como tal,
como jurídico, apenas um sistema normativo, ou uma
norma singular, dotado de certo conteúdo de justiça.
O que permitiria caracterizar como válida a norma ou
o sistema de normas seria esse conteúdo de justiça.
Mesmo em certas decisões judiciais de quando em
quando surge, em discursos que desbordam da
racionalidade, o apelo à moralidade como razão de
decidir. Tal e qual texto normativo estariam a violar o
ordenamento, ou seriam mesmo inconstitucionais, por
comprometerem a moralidade ou princípio da
moralidade.
13. – É certo, como anotei em outra oportunidade7,
que a Constituição do Brasil define a moral idade
como um dos princípios da Administração. Não a
podemos, contudo, tomar de modo a colocar em risco
a substância do sistema de direito. O fato de o
princípio da moralidade ter sido consagrado no art.
37 da Constituição não significa abertura do sistema
jurídico para introdução, nele, de preceitos morais.
7 O direi to posto e o direi to pressuposto, 7ª edição, Malheiros Edi tores,
São Paulo, 2.008, pp. 289 e ss.
12
Daí que o conteúdo desse princípio há de ser
encontrado no interior do próprio direito. A sua
contemplação não pode conduzir à substituição da
ética da legalidade por qualquer outra. O exercício da
judicatura está fundado no direito positivo [= a
eticidade de HEGEL]. Cada litígio há de ser
solucionado de acordo com os critérios do direito
positivo, que se não podem substituir por quaisquer
outros. A solução de cada problema judicial estará
necessariamente fundada na eticidade [= ética da
legalidade], não na moralidade. Como a ética do
sistema jurídico é a ética da legalidade, a admissão
de que o Poder Judiciário possa decidir com
fundamento na moralidade entroniza o arbítrio, nega
o direito positivo, sacrifica a legitimidade de que se
devem nutrir os magistrados. Instalaria a desordem.
Eis então porque resulta plenamente confinado, o
questionamento da moral idade da Administração --- e
dos atos legislativos --- nos lindes do desvio de poder
ou de f inalidade. Qualquer questionamento para além
desses limites apenas poderá ser postulado no quadro
da legal idade pura e simples. Essa circunstância é
que explica e justifica a menção, a um e a outro
princípio, na Constituição e na legislação
infraconstitucional. A moral idade da Administração --
- e da atividade legislativa, se a tanto chegarmos ---
apenas pode ser concebida por referência à
legal idade, nada mais.
13
14. – Digo-o com ênfase porque o que caracteriza o
surgimento do chamado direito moderno --- esse
direito que chamo direito posto pelo Estado, opondo-o
ao direito pressuposto --- é precisamente a
substituição do subjetivismo da eqüidade pela
objetividade da lei. A lei em lugar da vontade do rei.
Isso significa a substituição dos valores pelos
princípios. Não significa que os valores não sejam
considerados no âmbito do jurídico. Não significa o
abandono da ética. Significa, sim, que a ética do
direito moderno é a ética da legal idade.
A legalidade supõe a consideração dos valores no
quadro do direito, sem que, no entanto, isso conduza
a uma concepção substitutiva do direito pela moral. O
sistema jurídico deve por força recusar a invasão de
si mesmo por regras estranhas a sua eticidade
própria, regras advindas das várias concepções
morais ou religiosas presentes na sociedade civil. E --
- repito-o --- ainda que isto não signifique o sacrifício
de valorações éticas. O fato é que o direito posto pelo
Estado é por ele posto de modo a constituir-se a si
próprio, enquanto suprassume8 a sociedade civil,
8 Suprassumir como “desaparecer conservante”, para traduzir
Aufheben, no sentido apontado por Paulo Meneses, tradutor
de Hegel na Enciclopédia das Ciências Filosóficas em
Compêndio (Edições Loyola, São Paulo, 1.995, nota do
tradutor, p. 10). Vide Michael Inwood, Dicionário HEGEL,
trad. de Álvaro Cabral, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,
1.997, pp. 303-304), em especial o seguinte trecho:
“Aufheben é semelhante à NEGAÇÃO determinada que tem um
resultado positivo. O que resulta da suprassunção de algo,
por exemplo, o todo em que ele e seu oposto sobrevivem como
14
conferindo concomitantemente a esta a forma que a
constitui.
15. - Os valores, teleológicos, alcançam o direito pelo
caminho deontológico dos princípios. Porém isso
assim se dá sem que seja esquecida a distinção
hegeliana entre moral idade e eticidade. A moral idade
respeita às virtudes do homem na sua subjetividade,
ao passo que a eticidade repousa sobre as
instituições e as leis --- o nomos. Homem virtuoso
será, em ambos os casos, o que exerce de modo
adequado o seu predicado essencial, o ser racional;
virtuoso é o homem que usa a razão [logos]
exercitando a prudência [phrónesis]. No plano da
eticidade, o homem já não é visto isoladamente,
porém inserido no social, logo sujeito às instituições e
às leis. Virtuoso então, desde a perspectiva da
tradição que vai de PLATÃO a HEGEL, no plano da
eticidade, é o homem que respeita as instituições e
cumpre as leis.
Daí porque cumpre nos precavermos em relação aos
que afirmam o antipositivismo sem limites,
desavisados de que a ética da legal idade não pode ser
ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio
sistema. Certo conteúdo de justiça por certo se impõe
na afirmação do direito, mas conteúdo de justiça
momentos, é invariavelmente superior ao item, ou à
VERDADE do item suprassumido”.
15
interno a ele, quer dizer, conteúdo de justiça
positivado.
16. - A multiplicidade das morais e dos sistemas
éticos nos deixaria sem rumos e sem padrões de
comportamento se não pairasse sobre todas elas a
legalidade. Não obstante, diante da multiplicidade de
morais e de sistemas éticos aos quais nos podemos
vincular há quem sustente, em última instância, que
a moralidade é expressão de uma assim chamada
ética pública. Mas essa moral idade pública não pode
operar como critério de juízos praticáveis no âmbito
do direito, pois compromete a segurança e certeza
jurídicas na medida em que, como observa JOSÉ
ARTHUR GIANOTTI9, compreende um aprender a
conviver com os outros, um reconhecimento da
unilateralidade do ponto vista de cada qual, que não
impõe conduta alguma.
17. Fui ironicamente acusado de ser, no exercício da
magistratura, um positivista à outrance. Mas é que
sei, muito bem, que a legalidade é o derradeiro
instrumento de defesa das classes subalternas diante
das opressões, em todas as suas múltiplas e variadas
manifestações. Por isso --- permitam-me repeti-lo ---
o Poder Judiciário não está autorizado a substituir a
ética da legalidade por qualquer outra.
9 Moral idade públ ica e moral idade privada, in “Ét ica”, Adauto Moraes
[org. ] , Companhia das Letras, São Paulo, 2.007, p. 336.
16
Leio em PIETRO PERLINGIERI --- A legalidade
constitucional, cuja tradução está em vias de
publicação entre nós --- observações que me colocam
à margem de qualquer ironia: “A positividade do
direito está em ser ele interpretável (...) A
interpretação deve levar em consideração referências
externas ao texto, resultando estéril qualquer
interpretação limitada a um ‘significado próprio das
palavras’ (...) O momento do factual é absolutamente
inseparável do momento cognoscitivo do direito”. O
direito positivo há de ser continuamente reenviado a
elementos extra-positivos, sem que isso signifique
senão superação do positivismo meramente lingüístico,
dado que --- diz PERLINGIERI --- “ao intérprete não é
consentido passar por cima ou ignorar o texto”. Por
isso mesmo permaneço no âmbito de uma positividade
que ousaria chamar de positividade democrática, sem
ceder aos populismos que tomam a opinião pública e
o consenso das massas como fonte do direito.
18. É essa positividade democrática que, na morte de
Sócrates, preserva o bem da cidade. Porque era sábio,
Sócrates não foge, embora sua morte perpetrasse uma
injustiça. Pois a essa injustiça para ele correspondia,
em um mesmo momento, o bem --- isto é, a justiça ---
da cidade. Ainda que a justiça para Sócrates
coincidisse com a injustiça da cidade, Sócrates não
deseja escapar às leis da cidade e não foge. Bebe o
veneno que o mata, porém sabemos que Anito e
17
Meleto, embora o pudessem matar, não poderiam
causar-lhe dano10. O direito constitui a única
resposta racional possível à violência de toda a
sociedade. Tanto a soberania quanto a sua lei
[escrita] justificam-se --- como anota ELIGIO RESTA11
---em virtude da necessidade de coartar-se a violência
natural de todos nós. É à positividade do direito que
Sócrates presta acatamento ao não escapar da cidade.
19. - A exigência de comprovação de idoneidade moral
do cidadão enquanto requisito de elegibilidade sob a
égide da presunção de culpabil idade contemplada em
lugar nenhum da Constituição (qualquer pessoa
poderá ser considerada culpada independentemente do
trânsito em julgado de sentença penal condenatória)
instala a incerteza e a insegurança jurídicas.
Consubstancia uma violência. Substitui a
objetividade da lei [rectius da Constituição] pelo
arbítrio dos que o possam exercer por fundamentos
de força, ainda que no desempenho de alguma
competência formal bem justificada.
Prevalecerá então a delação, como ocorreu por longo
tempo na velha Roma. As túnicas brancas que os
Ministros Carlos Britto e Lewandowski mencionaram
há pouco, túnicas tão brancas nos filmes da Metro,
não foram suficientes para ocultar a perfídia. A
delação prevalecia. Tristes tempos, qual os descreve
10 Vide El igio Resta, La certezza e la speranza, Laterza, Bar i , 1992, p.
31.
11 Idem, pp. 27-28.
18
PAUL VEYNE12, que o abandono da phrónesis
reeditará entre nós. Os primeiros atos dos regimes de
terror que a História registra em páginas torpes
sempre avançaram sobre a intimidade dos cidadãos,
de modo que, de governados, eles vieram sendo
transformados em meros instrumentos do governo.
Depois, a ansiedade por justiça a qualquer preço, que
domina as massas. Observei sucessivamente, em
texto escrito com o Professor LUIZ GONZAGA DE
MELLO BELLUZZO13, que a violência faz parte do
cotidiano da sociedade brasileira, e de modo tal que
isso nega a tese do homem cordial que habitaria a
individualidade dos brasileiros. (...) Aqui as virtudes
republicanas encontram seus limites no privado, o
que nos coloca diante da absoluta imprecisão dos
limites da legalidade. As garantias da legalidade e do
procedimento legal, conquistas da modernidade das
quais não se pode abrir mão, são afastadas,
inconsciente, a sociedade, de que assim tece a corda
que a enforcará. (...) Na democracia brasileira, as
massas não exercem participação permanente no
Estado; são apenas eleitoras. Em determinados
momentos, contudo, elas despontam, na busca,
atônita, de uma ética --- qualquer ética --- o que
irremediavelmente nos conduz ao "olho por olho,
dente por dente”. (...) Sob a aparência da democracia
12 L’Empire greco-romain, Édi t ions du Seui l , Par is, 2005, pp. 41-44.
13 “Direi to e mídia, no Brasi l ”, in Debate sobre a Const i tuição de 1988,
Demian Fiocca e Eros Roberto Grau [org. ] , Paz e Terra, São Paulo, 2001,
pp. 105 e ss.
19
plebiscitária e da justiça popular, perecem os direitos
individuais, fundamentos da cidadania moderna, tais
como foram construídos ao longo da ascensão
burguesa e consolidados pelas duas revoluções do
século XVIII, a política e a econômica. É tragicamente
curioso que os valores mais caros à modernidade
iluminista, a liberdade de expressão e de opinião,
tenham se transformado em instrumentos destinados
a conter e cercear o objetivo maior da revolução das
luzes: o avanço da autonomia do indivíduo. Não
bastasse isso, os ímpetos plebiscitários, autorizados
pelas leis da imprensa [a imprensa, segundo PAUL
VIRILIO, goza da prerrogativa de editar as suas
próprias leis!], os ímpetos plebiscitários autorizados
pelas leis da imprensa colocam em risco o sistema de
garantias destinado a proteger o cidadão das
arbitrariedades do poder, seja ele público ou privado.
20. Quase concluindo, ocorre-me ainda, em
homenagem a um dos cânones primordiais da ética
judicial, o da neutral idade --- o juiz há de se manter
estranho, não se engajando nos conflitos que estão
incumbidos de solucionar ---, paragonar pequeno
trecho de artigo do Professor BELLUZZO14, publicado
esta semana: os juízes que de qualquer forma se
engajaram no movimento que a mídia chama de
“defesa das listas sujas” deverão ter o cuidado de
14 Lista suja, Just iça lenta, in Carta Capi tal , número 507, 6 de agosto de
2008, pág. 27.
20
argüir a própria suspeição caso estejam envolvidos
em processos que examinem acusações contra os
“listados”.
21. Jornal desta manhã afirma que a sessão de hoje,
neste tribunal, pode ser um divisor de águas na luta
pela moralização da vida pública. Não é verdade. Esta
sessão será, sim, um divisor de águas, mas no
sentido de reafirmar peremptória, incisiva,
vigorosamente as garantias democráticas.
É necessário que esta Corte cumpra o dever, que lhe
incumbe, de defesa da Constituição, por cuja
suspensão, algumas vezes, a sociedade tem clamado.
Então somos originais --- observei em outra ocasião15
--- somos tão originais que dispensamos quaisquer
déspotas para nos tornarmos presa do pior dos
autoritarismos, o que decorre da falta de leis e de
Constituição. O estado de sítio instala-se entre nós
no instante em que recusamos aos que não sejam
irmãos, amigos ou parentes o direito de defesa,
combatendo-os --- aqui uso palavras de PAULO
ARANTES16 --- como se fossem “parcelas-fora-da-
Constituição”. Ao abrir mão das garantias mínimas do
Estado de direito, o que poderíamos chamar de a
nossa sociedade civil submete-se a um estado de
exceção permanente, prescindindo de qualquer
déspota que a oprima. Logo declinará até mesmo do
direito de defesa que se prestaria a beneficiar seus
15 Déspota de si mesmo, in Carta Capi tal , n. 448, 13 de junho de 2.007,
pág. 23.
16 Ext inção, Boi tempo, São Paulo, 2007, pág. 45.
21
irmãos, amigos e parentes próximos. Já não merecerá
nenhum respeito quem renega sua própria história ---
qual anotou HELLER17 --- e perde o respeito pelas
instituições.
Voto para afirmar a desabrida improcedência da ação.
17 V. Hermann HELLER, "Rechtsstaat oder Diktatur?" in Gesammel te
Schr i f ten, 2ª ed, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck) , 1992, vol . 2,
pág. 460.
Fonte: Jus Vigilantibus