As urnas deram um recado claro: o bolsonarismo e seus aliados chegaram para ficar. Agora mais organizados, eles vão disputar palmo a palmo o poder com o PT.
Por Carlos Graieb (foto)
Passado o primeiro turno das eleições de 2022, o único fato incontornável é que uma nova direita fincou mesmo raízes na política brasileira. Para quem imaginava que Jair Bolsonaro estava prestes a ser varrido da paisagem, o resultado das urnas foi um corretivo e tanto. Mas a questão não é apenas a votação do presidente, que boa parte das pesquisas eleitorais subestimou. A partir de 2023, a direita vai se refestelar no poder em diversos estados – e terá força redobrada no Congresso. Quando chegou ao Planalto, em 2018, o atual presidente da República veio acompanhado de uma trupe desconjuntada de novatos, um exército de Brancaleone que mal conseguiu implementar programas de governo ou aprovar legislação (embora tenha desmontado muita coisa). Será diferente daqui em diante. Se Bolsonaro se reeleger, terá respaldo popular e estrutura política para avançar muito mais do que no primeiro mandato. Mesmo que ele não se reeleja – as chances, neste momento, lhe são desfavoráveis – uma direita bem mais organizada subirá à tribuna como porta-voz de mais de 50 milhões de eleitores.
Vale a pena olhar atentamente os números da eleição, a começar pelos de Bolsonaro. O presidente registrou 43% dos votos válidos no primeiro turno de 2022, contra 46% nas eleições de 2018. Isso se deveu à perda de votos em quatro estados. Em São Paulo, Bolsonaro teve 1,1% menos votos do que nas eleições anteriores; em Minas Gerais, 1,3%; no Rio Grande do Sul, 3,2%; no Rio de Janeiro, 5,4%. Em todo o restante do país, não houve debandada, mas o inverso: o desempenho de Bolsonaro melhorou. Inclusive no Nordeste lulista.
Nos mesmos quatro estados onde o presidente perdeu votos em relação a 2018, houve um contraponto. Deu-se uma “bolsonarização” dos governos locais. Em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, Romeu Zema (Novo) e Cláudio Castro (PL) se reelegeram no primeiro turno. Em São Paulo, o candidato bolsonarista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), vai disputar o segundo turno em vantagem, ao passo que o governador Rodrigo Garcia (PSDB), que buscava a reeleição, anunciou apoio ao presidente nesta semana. No Rio Grande do Sul, o também bolsonarista Onyx Lorenzoni (PL) mantém as chances de vitória. Outros cinco governadores se alinharam com Bolsonaro: Ibaneis Rocha (MDB-DF), Mauro Mendes (União Brasil-MT), Ratinho Jr. (PSD-PR), Antonio Denarium (PP-RR) e Ronaldo Caiado (União Brasil-GO).
A nova direita também se expandiu no Congresso. No Senado, parlamentares diretamente ligados a Bolsonaro, como Damares Alves e Marcos Pontes, conquistaram 14 cadeiras. Serão a maior força da casa, com cacife para pleitear sua presidência e controlar a pauta das votações. Na Câmara dos Deputados, o bloco dos partidos de direita (PL, PP, Republicanos, Patriota, União Brasil e PTB) vai ocupar o dobro das vagas do bloco de esquerda (PT, Psol, PSB, PCdoB, PDT, PV e Rede). O placar é de 257 a 128. A presidência deverá ficar nas mãos Arthur Lira (PP), o “senhor orçamento secreto” – um parlamentar para lá de flexível, mas que só a muito custo (o duplo sentido é intencional) deixará a direita onde se aninhou para eventualmente dialogar com um governo de esquerda.
Para entender as eleições brasileiras, é útil observá-las pela ótica dos cientistas políticos Cesar Zucco (FGV), David Samuels (Universidade de Minnesota) e Fernando Mello (Universidade da Califórnia). No livro Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil (Partidários, Antipartidários e Apartidários: O Comportamento do Eleitor no Brasil), lançado em 2018, os dois primeiros exploraram a identificação dos eleitores com os partidos brasileiros. Isso os levou à conclusão de que, desde o final da década de 1980, são duas as forças que organizam o nosso campo político: o petismo e o antipetismo.
Mais do que simplesmente exercer uma escolha a cada eleição, ser petista, para muitos eleitores, é um modo de vida. Curiosamente, o mesmo vale para o antipetismo: ele também pode servir como um traço identitário. “No Brasil, uma parte do eleitorado tem uma visão negativa do PT, sem necessariamente ter vínculo positivo com outro partido. Essas pessoas expressam uma atitude partidária puramente negativa”, diz Mello, que colabora com Zucco e Samuels em novas pesquisas (e também é um dos sócios do site jurídico Jota). Trata-se de um fenômeno raro: somente o antiperonismo, na Argentina, teria alguma semelhança com ele.
Em março deste ano, os três cientistas políticos organizaram uma bateria de 5 mil entrevistas para dimensionar os contingentes atuais de petistas e antipetistas. Estes foram os resultados: 24% dos eleitores se apresentaram como petistas e 29%, como antipetistas. Juntos, eles compõem 53% do eleitorado brasileiro. E os 47% restantes? Esses são os apartidários: cidadãos que têm um vínculo fraco com outras legendas ou não simpatizam com nenhuma delas. Eles prestam atenção intermitente ao dia a dia da política e estão voltados para outros afazeres. Só em épocas de eleição concentram-se nos políticos para compará-los e fazer uma opção.
Ao longo do tempo, o voto antipetista beneficiou diferentes candidatos: Fernando Collor em 1989, Fernando Henrique Cardoso em 1994 e 1998, Aécio Neves em 2014. E claro, Jair Bolsonaro, em 2018 e agora, em 2022. Para vencer suas respectivas eleições, no entanto, todos eles também precisaram ser vistos como representantes dos interesses de um grande número de apartidários. Assim, seria um erro acreditar que a agenda radical de Bolsonaro e companhia reflete com exatidão os interesses de todos os seus 51 milhões de eleitores.
A expressão “nova direita”, usada já por duas vezes neste artigo, soa como um eufemismo. Por que não dizer logo, por exemplo, que foram a extrema direita populista e o centrão oportunista que se uniram neste 2022, prometendo causar muito estrago nas instituições e nos cofres públicos ao longo dos próximos anos? Um motivo é que os vitoriosos desta eleição de fato substituem direitas mais antigas ou tradicionais. Observe-se a derrocada do PSDB. O partido ainda tem chance de conquistar os governos de Pernambuco, Paraíba, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. Mas no Congresso, a federação dos tucanos com o Cidadania conseguiu eleger apenas 18 deputados – e nenhum senador. Nesta edição de Crusoé, o cientista político Magno Karl, diretor-executivo do movimento Livres, explica que também o liberalismo clássico – aquele que defende “uma agenda moderada e gradualista, que substitua a gritaria pelo diálogo” – perdeu o seu espaço parlamentar. “Dezenas de vozes estarão fora de uma legislatura importante, vitimados pela disputa entre dois gigantes populares”, escreve ele.
A segunda razão é que atribuir a todos os eleitores de Bolsonaro a mesma truculência do presidente não ajuda em nada — além de não ser verdade. Uma pesquisa realizada em março deste ano pelo instituto Ibpad, em parceria com o site Jota, mediu a concordância dos simpatizantes de Lula, Bolsonaro, Simone Tebet e Ciro Gomes com diversas afirmações. A pesquisa mostrou que, embora exista realmente divergência significativa em temas como o aborto, também há convergência em diversos pontos. O número de simpatizantes de Lula e Bolsonaro que concordam com a ideia que “O governo deve adotar políticas enérgicas para combater o desmatamento e preservar o meio ambiente” foi rigorosamente o mesmo: 90%. O resultado foi parecido ao se tratar de racismo: 81% dos eleitores de Bolsonaro e 90% dos de Lula concordaram com a frase “O governo deve ter a obrigação de combater o racismo e a discriminação racial”.
Na tarde de segunda-feira, 3, o PT e seus aliados se reuniram para discutir os resultados da votação realizada no dia anterior. Na chegada, a ex-presidenciável Marina Silva (Rede), agora eleita como deputada federal, foi interpelada pelos repórteres. Quando lhe perguntaram o que a esquerda deveria fazer para capturar mais eleitores no segundo turno, ela – que é evangélica – respondeu que a votação deveria fazer com que a esquerda refletisse sobre seus preconceitos e passasse a escutar segmentos da sociedade mais conservadores, em vez de simplesmente tentar encontrar maneiras de atraí-los. Marina Silva tem razão. Agora que a direita reforçou suas fileiras em Brasília e nos governos estaduais, encarar como legítimas, e não como meros sintomas de histeria ou barbárie as preocupações de evangélicos, fazendeiros ou cidadãos comuns que desejam ser donos de uma arma é indispensável para evitar que o ambiente político no Brasil continue a se deteriorar.
Revista Crusoé