O extremismo nas redes sociais, a desinformação e a agressividade de autocratas e iliberais estão deteriorando um dos principais pilares da democracia
A democracia e a liberdade de imprensa são tão visceralmente ligadas que é impossível dizer qual é a causa e qual a consequência. Os dados comprovam as associações entre a imprensa independente, democracias vibrantes e corrupção limitada. Não surpreende, portanto, que a recessão da democracia na última década seja espelhada pela deterioração da liberdade de imprensa. Essa deterioração é, a um tempo, sintoma e causa dessa recessão.
O extremismo nas redes sociais, a epidemia de desinformação, a agressividade dos regimes autocráticos e dos populistas iliberais e, no Brasil, a disputa dos dois movimentos mais hostis à imprensa na Nova República, o bolsonarismo e o lulopetismo, tornam mais relevante do que nunca celebrar o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, neste 3 de maio.
De acordo com a Freedom House, uma instituição de monitoramento da democracia, só 13% da população mundial goza de uma imprensa livre. As autocracias movem uma ofensiva para provar que a prosperidade pode ser conquistada sem ela.
A guerra deu a Vladimir Putin o pretexto ideal para recrudescer o controle sobre a mídia russa, desativar redes sociais, perseguir jornalistas e criminalizar dissidentes. O Partido Comunista Chinês construiu o aparato de censura mais sofisticado do mundo e tem expandido sua influência sobre veículos no exterior para promover sua propaganda e suprimir críticas.
No Ocidente, a promessa das redes sociais de ampliar o pluralismo e a liberdade de opinião fracassou: dominadas pelos extremos à direita e à esquerda, milícias virtuais e agentes de desinformação autocráticos, elas se parecem cada vez menos com um governo do povo e cada vez mais com um governo dos truculentos.
O problema não são tanto as publicações tóxicas, mas seu alcance e influência. A lógica de impulsionamento dos algoritmos favorece o sensacionalismo e a agressividade. Há um consenso sobre a urgência de regulações que reduzam a atuação dos robôs e trolls e restituam o espaço à maioria silenciosa e exausta, mas há pouco consenso sobre quais devem ser.
A polarização e a “infodemia” exacerbaram a desconfiança em relação à imprensa explorada por líderes iliberais. Eles vêm desenvolvendo um kit de ferramentas econômicas, legais e extralegais para silenciar mídias independentes e anabolizar as correligionárias. Na Hungria o controle está praticamente consolidado. Entre as táticas de intimidação do ex-presidente americano Donald Trump estão ameaças de recrudescer leis de difamação, revogar licenças de veículos de comunicação e prejudicar seus negócios.
No Brasil, Lula da Silva suscita recorrentemente a velha ambição de “controle social da mídia”, não tendo pudores de invocar a propósito sua admiração por ditaduras como Cuba, Venezuela ou China.
Dos princípios da administração pública, possivelmente o mais brutalizado pelo presidente Jair Bolsonaro foi o da transparência. A imprensa criou um consórcio para garantir informações confiáveis na pandemia, e veio dela a denúncia de um orçamento secreto para distribuir verbas a correligionários.
Pari passu com a difusão de notícias falsas e discursos de ódio, insultos, estigmatização e humilhações públicas de jornalistas são métodos empregados sistematicamente pelo bolsonarismo. A Federação Nacional dos Jornalistas registrou um pico de ataques verbais e físicos a profissionais de imprensa. Só em 2020 foram 428. Bolsonaro foi autor de 175 agressões verbais. No mesmo ano, segundo a organização Artigo 19, ele deu em média 4,3 declarações falsas ou enganosas por dia.
Como disse um dos fundadores da democracia moderna, Thomas Jefferson, o experimento democrático se presta a provar que os seres humanos podem ser governados pela razão e pela verdade. “Nosso primeiro objetivo deveria ser, portanto, abrir a eles todas as avenidas para a verdade. E a mais eficaz encontrada até agora é a liberdade de imprensa. Logo, ela é a primeira a ser obliterada por aqueles que temem a investigação de suas ações.” Mais de 200 anos depois, nunca essa obliteração atingiu níveis tão alarmantes.
O Estado de São Paulo