Por Pablo Ortellado (foto)
Na última semana, vimos mais uma rodada desta espécie de dança entre a Justiça e militares ligados ao presidente. De um lado, há o movimento por parte desses militares para semear desconfiança no sistema eleitoral, ao que tudo indica, preparando a alegação de fraude caso Bolsonaro perca as eleições por margem reduzida. De outro, há o movimento da Justiça para dirimir quaisquer dúvidas sobre as urnas e envolver os militares na preparação das eleições.
O TSE criou em setembro de 2021 uma Comissão de Transparência nas Eleições (CTE) para fazer a fiscalização e auditoria do processo eleitoral. Nessa comissão, além de representantes de ONGs e universidades, uma vaga foi reservada aos militares. Segundo o jornal Valor Econômico, o TSE convidou um almirante para a vaga, mas o Ministério da Defesa ficou incomodado com o convite e terminou indicando o general Heber Portella, alinhado com o Planalto.
Na comissão, o general Portella tem feito críticas detalhadas e incisivas às urnas. Algumas foram vazadas nas redes bolsonaristas, no espírito de mostrar o caráter “vigilante” das Forças Armadas. Isso levou o TSE a publicar respostas a elas (um relatório de mais de 700 páginas!). Depois, o general preparou uma réplica minuciosa — que permanece em sigilo —, e o TSE respondeu numa tréplica publicada pela imprensa.
É a esse jogo duro do representante da Defesa na comissão que o ministro Luís Roberto Barroso aludiu num debate acadêmico na Alemanha no último domingo, ao dizer que as Forças Armadas têm sido orientadas a atacar e a desacreditar o processo eleitoral. A Defesa respondeu à declaração em nota oficial, dizendo que a insinuação do ministro era “ofensa grave” e que os militares “apresentaram propostas colaborativas, plausíveis e exequíveis no âmbito da Comissão de Transparência das Eleições”.
Na quarta-feira, Bolsonaro disse num evento que uma solução para a falta de confiança no sistema eleitoral seria uma apuração paralela das eleições pelas Forças Armadas: “Quando encerra eleições e os dados chegam pela internet, tem um cabo que alimenta a ‘sala secreta do TSE’ (...), onde meia dúzia de técnicos diz ‘quem ganhou foi esse’. Uma sugestão é que, nesse mesmo duto, seja feita uma ramificação, um pouco à direita, porque temos um computador também das Forças Armadas para contar os votos”. Um dia depois, em sua live semanal, o presidente disse que o TSE deveria atender às sugestões das Forças Armadas “para o bem de todos”.
Não existe uma sala secreta que recebe os dados das urnas e declara o vencedor. A proposta de uma apuração em paralelo pelos militares deveria acender um alerta. Assim como também deveria acender um alerta a proposta da Defesa na comissão do TSE de que se tomem “medidas que permitam a validação e a contagem de cada voto, mesmo que as mídias ou urnas sejam descartadas” —proposta que cheira demais à tese derrotada do voto impresso.
Essa situação toda começou com o esforço de Bolsonaro por cooptar militares para o governo e, ao mesmo tempo, promover a descrença no sistema eleitoral. A campanha de Bolsonaro pôs bastante energia em desacreditar as urnas ainda nas eleições de 2018, mesmo quase tendo vencido no primeiro turno (Bolsonaro teve 46% dos votos). Na Universidade de São Paulo, fizemos um levantamento das postagens bolsonaristas no Facebook nos 40 dias de campanha do primeiro turno e identificamos 1,5 milhão de compartilhamentos de postagens atacando as urnas.
Não é segredo que a estratégia é a mesma de Donald Trump, que, também tendo vencido Hillary Clinton em 2016, alegou fraude. Depois, em 2020, saiu da Casa Branca vociferando que as eleições haviam sido roubadas. Trump incentivou a invasão do Congresso americano no dia da validação do resultado e, soube-se depois, estudou mandar o Exército para apreender urnas nos estados. Até hoje, um terço do eleitorado americano acredita que as eleições de 2020 foram fraudadas. A tese conspiratória tem até nome: “A grande mentira”.
Toda essa movimentação do TSE é para impedir que o Brasil viva sua própria versão da grande mentira. A estratégia é segurar os militares, esclarecendo dúvidas e os incorporando à própria dinâmica do processo eleitoral, para que não possam se somar aos gritos de fraude que vierem do lado de fora. A própria necessidade de segurar os militares para impedir que sejam mobilizados pelas alegações fantasiosas do presidente mostra quanto nossa democracia já está fragilizada.
O Globo