A pedido de associações de magistrados, o CNJ tem criado novas despesas e disciplinado a política remuneratória dos juízes independentemente de lei nesse sentido
Um levantamento feito pelo Estadão mostrou o desembaraço de associações de magistrados na busca por vantagens financeiras a seus associados. O curioso, desta vez, é que os pleitos dessas associações não se dirigem a membros do Congresso Nacional nem são ações ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal (STF).
Como mostra a reportagem, desde 2020 as associações têm obtido seguidos êxitos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A investida mais recente, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), busca ampliar um auxílio pago aos magistrados quando há um excesso de novos processos ajuizados.
A Anamatra pleiteia a redução do número de litígios que autorizam o pagamento da chamada Gratificação por Exercício Cumulativo de Jurisdição (GECJ). A ideia da associação é reduzir de 1.500 para 750 o número de novas ações para fins de cálculo da gratificação.
Se o CNJ deferir esse pleito, não só os magistrados da Justiça do Trabalho poderão ser beneficiados com esse bônus. O dinheiro extra, equivalente a um terço do salário, também poderá aparecer nos contracheques de juízes de todo o País e de todos os ramos do Judiciário.
A iniciativa chama a atenção por mais de um motivo. Primeiro, porque a categoria que pleiteia o benefício não figura entre as mais prejudicadas pelos efeitos da pandemia de covid-19 ou da gestão econômica irresponsável do governo Bolsonaro. Além desses dois fatores não terem impactado os vencimentos dos magistrados – realidade experimentada por muitos brasileiros de diferentes ocupações –, seus salários os colocam entre o 1% mais rico da população.
Some-se a isso que o pleito da Anamatra poderá representar um custo anual de R$ 167 milhões. Conforme o relatório Justiça em Números, do CNJ (2021), as despesas totais do Poder Judiciário chegam a 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB), um recorde internacional, e 92,6% desse montante é de despesas com recursos humanos (pessoal e encargos).
Outro ponto que chama a atenção na iniciativa da Anamatra e de outras associações de magistrados é o foco no CNJ. A reportagem do Estadão mostra, por exemplo, que esse órgão já determinou aos tribunais federais e do trabalho, a pedido da Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e da Anamatra, a aquisição de 20 dos 60 dias de férias dos juízes.
Vale recordar aqui que o CNJ tem como atribuição primordial o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (artigo 103-B, parágrafo 4.º, da Constituição Federal). Para as referidas associações, entretanto, aquele órgão também poderia criar novas despesas e disciplinar a política remuneratória dos magistrados independentemente de lei nesse sentido.
Essa dispensa da lei também chama a atenção. Afinal, é ela o veículo pelo qual a sociedade, democraticamente, cria direitos e obrigações jurídicas. A legalidade é sinônimo não só de certeza quanto ao direito, mas também de segurança contra o arbítrio. A lei não é obra de um único indivíduo ou de uma casta, mas dos representantes políticos da comunidade. É uma obra coletiva. Daí que, num cenário de escassez de recursos públicos, era de esperar uma maior valorização do processo legislativo por parte de representantes do Poder Judiciário.
A importância desse processo é reconhecida pela própria Anamatra. Em texto publicado em seu site em julho de 2017, ela critica a reforma trabalhista feita no governo Temer por ela ter supostamente desconsiderado “a regra básica da formação de uma legislação trabalhista, que é a do diálogo tripartite, e também por conta da supressão do indispensável debate democrático”.
É essa consciência da relevância do debate democrático que se espera das associações de magistrados em temas de interesse de toda a sociedade, tais como a destinação de recursos públicos à categoria que representam. Ou também aqui valerá o velho dito “Aos amigos os favores, aos inimigos a lei”?
O Estado de São Paulo