A intervenção da Corte Suprema proporcionou a mobilização da militância evangélica
Por Demétrio Magnoli (foto)
Roe v. Wade, a sentença da Corte Suprema dos EUA sobre o aborto, será derrubada pelo mesmo tribunal antes de completar 50 anos. No aniversário de 40 anos daquela decisão, a juíza Ruth Bader Ginsburg diagnosticou-a como um equívoco histórico. Ginsburg foi uma voz icônica pelos direitos das mulheres e estava de acordo com os fins, isto é, com a legalização do aborto. O ponto, para ela, era outro: o método.
O aborto é definido como um direito pela quase totalidade das democracias europeias. Contudo, as nações europeias legalizaram a interrupção voluntária da gravidez por meio do voto majoritário de seus parlamentos, que refletiam a pressão de movimentos sociais.
Os EUA, como apontou Ginsburg, seguiram caminho distinto: Roe v. Wade cortou uma nascente mobilização pelo direito ao aborto —e semeou o terreno para um "movimento pela vida" que impulsionou as guerras culturais do último meio século.
No início da década de 1970, diferenças de opinião sobre o aborto atravessavam os dois grandes partidos americanos. A intervenção radical da Corte Suprema proporcionou uma plataforma de mobilização para a militância evangélica, que costurou extensas redes sociais, articulando-as nos níveis local e estadual.
O "movimento pela vida" abrigou-se no Partido Republicano e, aos poucos, transformou-o por dentro. O combate a Roe v. Wade converteu-se em marca dos republicanos, enquanto a defesa da sentença tornava-se um traço fundamental dos democratas.
Cinco anos depois de Roe v. Wade, o parlamento italiano aprovou a Lei 194, que legalizou o aborto numa nação governada pela democracia-cristã e vincada pela tradição católica. De lá para cá, não surgiu um amplo movimento social antiaborto na Itália.
É muito mais difícil engendrar mobilizações em oposição a leis deliberadas pelos representantes eleitos que contra uma arcana interpretação constitucional de um colegiado de juízes.
O método esculpe os resultados. Tribunais constitucionais decidem sobre princípios, buscando soluções legais paradigmáticas, enquanto parlamentos operam de modo pragmático, conciliando pressões sociais contraditórias. Roe v. Wade extraiu do direito à privacidade um quase ilimitado direito à interrupção da gravidez.
Na Europa, pelo contrário, o direito ao aborto é circunscrito por uma proteção relativa da vida do feto. A Itália coloca o limite nos primeiros 90 dias da gravidez. Em outros países, a fronteira varia entre 10 e 16 semanas. Há casos em que a legislação exige sessões de aconselhamento psicológico prévias à decisão final da gestante.
O "movimento pela vida" nos EUA organizou suas campanhas de propaganda ao redor das imagens e sons de abortos tardios. A estratégia abriu-lhe as portas para audiências que ultrapassam largamente o núcleo militante cristão. Paulatinamente, a promessa de indicar juízes conservadores —e dispostos a reverter Roe v. Wade— passou a figurar com destaque nas campanhas presidenciais republicanas.
Assim, a composição da Corte Suprema tornou-se foco da concorrência entre os partidos —e o próprio tribunal começou a refletir a cisão político-partidária.
Militantes tendem a perfilar-se atrás de princípios absolutos: o "direito do feto à vida", de um lado, e o "direito das mulheres ao seu corpo", de outro. Na Europa, movimentos feministas contestam os limites temporais à interrupção da gravidez. Nos EUA, movimentos evangélicos almejam a proibição geral do aborto. As guerras culturais são arenas de insolúveis conflitos dogmáticos, como os que agora se travam no Brasil.
A maioria das pessoas raciocina sob premissas diferentes, que possibilitam intercâmbios e conciliações. Os debates parlamentares, apesar de tudo, espelham essas abordagens mais matizadas. É por isso que a derrubada do veredito de 1973 não significa, necessariamente, um retrocesso histórico.
Folha de São Paulo