A Rússia diz que decidiu “reduzir drasticamente” os ataques às cidades de Kiev e Chernigov, no norte da Ucrânia.
A medida, que é vista com ceticismo pelas autoridades ucranianas e seus aliados, foi anunciada após cinco semanas de guerra, nas quais unidades de combate russas sofreram inúmeras baixas, sendo forçadas a retornar à Rússia e a Belarus para se reorganizar.
Os contra-ataques ucranianos fizeram as tropas russas retroceder e, de acordo com o Ministério da Defesa britânico, a Rússia está tendo problemas para sustentar suas operações em várias áreas. Então, aparentemente, o país decidiu se concentrar no leste, na região de Donbas, e abandonar o objetivo de cercar e controlar Kiev, a capital.
Mas o que está por trás desta mudança de estratégia?
A seguir, você confere a análise feita por Frank Gardner, correspondente de segurança da BBC.
Não devemos ser ingênuos. Quando a Rússia diz que vai se retirar de Kiev, não é por um grande gesto de boa vontade, mas porque deu um passo maior que as pernas. O país tem tentado travar esta guerra em três eixos: ao sul, em volta de Mariupol; a leste, em Donbas; e ao norte, ao redor de Kiev e Chernigov. E está sobrecarregado.
Eles podem continuar as negociações de paz, mas, em última análise, isso será decidido pelos fatos em solo. E o fato é que os russos controlam agora cerca de dois terços da costa ucraniana do Mar Negro, da fronteira leste com a Rússia até um pouco antes de Odessa, no oeste. Está quase em posição de controlar o comércio marítimo da Ucrânia.
De forma sensata em termos militares, os russos estão se concentrando principalmente na tentativa de aniquilar o exército regular ucraniano no leste e ao redor de Donbas.
Se este momento chegar, eles dirão “temos o que queremos, estamos prontos para falar sobre paz agora” — e vão tentar fazer a Ucrânia parecer bastante obstrutiva ao não aceitar os termos de Moscou. Ou poderão usar a vitória como base, voltar sua atenção para Kiev e tentar tomá-la.
Kiev ainda não está a salvo.
Os ucranianos conseguiram manter as forças russas fora de Kiev, embora estejam começando a sofrer com a artilharia. Mas, enquanto isso, cidades como Chernigov e Kharkiv estão sendo completamente destruídas por artilharia, foguetes e mísseis. Infelizmente, ainda haverá muito mais mortes de civis nesta guerra.
Os negociadores ucranianos disseram que não querem abrir mão de nem sequer um centímetro do território ucraniano, e esta é uma das razões pelas quais as negociações de paz não andaram até agora, porque as posições da Rússia e da Ucrânia ainda estão muito distantes.
A Ucrânia pode concordar em ser um país neutro sem armas nucleares e não fazer parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Mas ainda quer se juntar à União Europeia, quer olhar para o Ocidente, e o presidente russo, Vladimir Putin, não quer um governo de inclinação ocidental em Kiev, na sua fronteira. Ele quer pelo menos um neutro entre o Ocidente e o Oriente, embora prefira um pró-Kremlin.
É muito provável que haja uma pressão internacional, particularmente da Otan e dos EUA, sobre o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para fazer um acordo para dar um fim aos combates.
E, para a Rússia, não faz sentido acabar com esta guerra porque ainda há mais de 100 mil soldados russos sentados à beira da fronteira ucraniana, esperando para atacar.
Como se garante a segurança da Ucrânia sem colocar ali forças da Otan, que são inaceitáveis para a Rússia? Há um dilema muito difícil aí.
Se houvesse alguém diferente no poder no Kremlin, menos agressivo que Vladimir Putin, a Ucrânia não se sentiria tão ameaçada. E Putin não tem intenção de abrir mão do poder. Mesmo se renunciasse ao cargo de presidente, ele seguiria sendo o poder.
O rei francês Luís 14 dizia “l’Etat, c’est moi” (“Eu sou o Estado”). Não há ninguém em Moscou que possa desafiar Putin em termos de poder, nem os oligarcas, nem o Serviço Federal de Segurança, nem o Ministério da Defesa. Ele é todo-poderoso.
Mas Putin deve estar muito chateado com a forma como tudo se deu até agora, porque saiu de seus planos. Acho que ele foi induzido ao erro por seus chefes de inteligência, que disseram a ele que seria muito mais fácil.
Um relatório que vazou do Komsomolskaya Pravda, um jornal controlado pelo Kremlin, mostrou que há cerca de 10 mil soldados russos mortos (eles disseram que foram hackeados e não era um relatório genuíno). O Pentágono, que tem sido bastante conservador em suas estimativas, calculou as mortes russas em cerca de 7 mil há uma semana. A Ucrânia diz que há 16 mil mortos.
Os números exatos estão provavelmente em algum lugar no meio. É quase o mesmo número de soldados que a União Soviética perdeu em 10 anos de combates no Afeganistão (1979-1989), uma taxa de baixas muito alta.
O Kremlin disse na quarta-feira (30/03) que Mariupol deveria se render. Eles querem ter o controle completo da rota terrestre entre a Crimeia e Donbas. Mariupol estava no caminho disso e foi fortemente defendida. Provavelmente ainda há alguma resistência, mas as forças russas já estão na maior parte da cidade.
O que sobrou dela não vale a pena manter, são apenas destroços.
O chefe da inteligência militar ucraniana, Kyrylo Budanov, afirmou dias atrás que o plano de Putin é dividir a Ucrânia em duas, como aconteceu com a Coreia, mas não haveria um limite tão claro quanto a linha reta que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul.
O mais provável é que seja uma linha desigual e frágil disputada, dependendo de onde estejam as tropas, no sul e sudeste da Ucrânia, um pedaço no leste ao redor de Donbas e possivelmente alguns trechos no norte.
Mas isso será inaceitável para o governo ucraniano. Eles lutaram muito, fizeram os russos retrocederem em alguns lugares, não vão querer ceder território — e é por isso que, infelizmente, a Rússia vai continuar a fornecer armas às suas tropas, a Otan vai continuar a fornecer armas aos ucranianos e esta luta vai continuar.
BBC Brasil / Daynews