O presidente não vai nada bem nas pesquisas de opinião e declarações destemperadas podem ser forma de “ganhar a guerra” no gogó.
Por Vilma Gryzinski
Três afirmações aparentemente fora de propósito levaram muitos especialistas em política externa a erguer, metaforicamente, as mãos para o céu e implorar: “Alguém tem que cortar o microfone de Joe Biden”.
Nas declarações feitas ao longo da semana passada, Biden disse que os Estados Unidos “responderiam à altura” se a Rússia usasse armas químicas e que soldados americanos baseados na Polônia logo veriam como estão as coisas na Ucrânia. Na mais impactante delas, clamou: “Pelo amor de Deus, esse homem não pode continuar no poder”.
Como o homem é Vladimir Putin e implicar um envolvimento direto de forças americanas contra a Rússia é anátema, pelas consequências catastróficas que engolfariam os dois países detentores de 90% das armas nucleares do planeta, as frases de Biden ficaram parecendo coisa de um político sem noção, ou pior ainda, afetado por sinais de senilidade.
Existe, ainda, uma terceira hipótese: Biden, com mais de cinco décadas de vida na política e olhos sempre grudados nas pesquisas, estaria buscando um jeito fácil de conquistar a parcela da opinião pública americana que não aprova o modo como está conduzindo os Estados Unidos frente à agressão russa contra a Ucrânia.
E não é uma parcela pequena. Segundo uma pesquisa NPR/Ipsos, 56% acham que Biden não está sendo “suficientemente duro” com a Rússia, 39% acham que deveria fazer mais para ajudar a Ucrânia e só 7% acham que deve fazer menos. E 55% aprovam um aperto nas sanções contra a Rússia, mesmo que isso afete a economia americana, uma prova de que as imagens de um país invadido, com milhões de mulheres e crianças em fuga e patrióticos combatentes defendendo a liberdade, têm um efeito poderoso.
Parênteses: as teses ensandecidas de uma parte da direita americana, de que tudo não passa de uma conspiração globalista e que a Ucrânia realmente é governada por neonazistas, segundo os delírios de Putin, são endossadas por apenas 2%.
Mais pesquisa: a maior preocupação dos americanos – na faixa dos 40% – é com a inflação. Como nem o presidente dos Estados Unidos tem a varinha de condão para acabar magicamente com o complexo mecanismo do aumento de preços, Biden pode olhar para as pesquisas e ver que seu campo de ação para influenciar a opinião pública é no gogó, falando grosso com o maior de todos os vilões, Vladimir Putin.
O presidente provavelmente sabe que a atenção do público é caprichosa e, na falta de desdobramentos dramáticos, a guerra vai virar “mais do mesmo”. As próximas etapas também estão cheias de armadilhas: em algum momento, o governo americano terá que exercer pressão i sobre a Ucrânia para avançar num acordo com a Rússia.
Por mais que desejemos ver tanques ucranianos estacionando nas muralhas do Kremlin, isso não vai acontecer. A Ucrânia não vai ganhar dos russos e sofrerá algum tipo de perda territorial.
Vladimir Putin não pode parecer que ganhou, mas também não pode parecer que sofreu uma humilhação insuportável, que o transforme numa espécie de Kim Jong-un muito mais letalmente equipado, argumenta o analista Samuel Charap, da Rand, para a Foreign Affairs.
“No curto prazo, as prioridades dos Estados Unidos devem continuar a ser impedir uma vitória de Putin no campo de batalha, evitar a escalada do conflito e limitar seu custo econômico e humanitário”.
“No longo prazo, os Estados Unidos querem formatar o comportamento da Rússia de forma que minimize os riscos para os interesses geopolíticos americanos e a estabilidade internacional e reduza o potencial para futuros conflitos regionais”.
“Sem algum tipo de acordo com o Kremlin, o resultado mais provável é uma guerra longa e penosa que a Rússia, de qualquer maneira, provavelmente vai ganhar”.
Ao contrário dos defensores da tese de deixar a Rússia “sangrando” numa guerra que imaginou equivocadamente ganhar logo nos primeiros dias, Charap acha que o prolongamento do conflito, além de aumentar a escala de destruição da Ucrânia, insuflaria o fluxo de refugiados de tal forma que poderiam desencadear crises políticas nos países vizinhos que os recebem. Sem contar que as consequências econômicas poderiam provocar uma recessão mundial.
Outro analista, o inglês Sam Ashworth-Hayes, diretor da Henry Jackson Society, defende uma tese parecida: nenhuma das partes pode ter uma vitória incontestável.
“O avanço da Rússia empacou e o exército não tem tropas para uma ocupação total. As forças ucranianas não têm condições de forçar a Rússia a se retirar do país. Nenhum dos lados parece suficientemente exaurido pelo conflito para simplesmente entregar os pontos”.
O domínio da narrativa alcançado pela Ucrânia, segundo ele, vai acabar se exaurindo e o jeito vai ser negociar – o que exigirá, inelutavelmente, a influência dos Estados Unidos.
Não vai ser um espetáculo fácil ou bonito. Joe Biden sabe disso. Firmar-se como o líder que proclamou que “esse homem não pode continuar no poder” talvez aumente sua estatura moral junto ao público americano antes de ser levado à desconfortável posição de forçar concessões da Ucrânia.
A hipótese de que o presidente tenha dito o que disse por descontrole verbal contrasta com o modo equilibrado, na prática, com que vem conduzido uma crise, até agora boa para os Estados Unidos: a Rússia não ganhou, a Ucrânia não perdeu, aliados relutantes correram para se abrigar sob a bandeira de listas e estrelas e tem fila de clientes europeus disputando o gás americano.
“Ao atacar um país soberano e horrorizar o mundo, Putin deu a Biden uma oportunidade rara de unir o que costumava ser chamado de mundo livre”, escreveu Matt Purple na Spectator. “Se ele é fisicamente ou mentalmente competente para aproveitar essa oportunidade, é outra questão”.
Revista Veja