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quinta-feira, abril 28, 2022

O mito do império euro-asiático que justifica a guerra




Por José Couto Nogueira (foto)

Os euro-asiáticos não tiveram uma vida fácil até à chegada ao poder de Vladimir Putin, um oficial do KGB saudoso do poder soviético e desejoso de fazer voltar a Rússia ao seu destino histórico. Deram-lhe a justificação ideológica para exercer o poder e, sobretudo, para iniciar um novo processo de expansão a partir de Moscovo.

Todos os opinadores, académicos, jornalísticos ou simplesmente espectadores, tentam responder à pergunta fundamental: o que se passa na cabeça de Putin? Será um narcisista, um nacionalista ressabiado, ou um louco? Mas Putin, seja qual for a sua persona, representa a actualidade de uma ideia secular, o euro-asianismo.

Euro-asianismo? Quem ouviu falar deste conceito? No entanto, aberta ou sub-repticiamente, as teorias euro-asiáticas influenciaram toda a História da Rússia, subjacentes aos quatro regimes que o país conheceu, o czarismo, o comunismo, a (breve espécie de) democracia e, agora, a república ditatorial.

Putin pode ter motivações pessoais – o seu próprio poder e a reconstituição do poder da Rússia estalinista – e um perfil psicológico mórbido, mas representa a continuação de uma ideia imperial que vem do tempo dos czares.

Por detrás da vaidade, Putin tem ideias concretas sobre o seu papel na História da Rússia e, por extensão, do Mundo. Há quem lhe chame de “Kremlin centrismo” e, na actualidade, de “putinismo”; basicamente, o conceito é que Moscovo deve ter um papel central na política e na ideologia internacionais, contrariando a decadência civilizacional representada pela Europa e o domínio militar dos Estados Unidos.

Vários intelectuais teorizaram sobre este conceito, nomeadamente Lev Gumilyov (1912-1992), Alexander Prokhanov (n. 1938) e Aleksandr Dugin (n.1962), entre outros que seria entediante citar.

Em termos de leitura da História, esta corrente acredita, primeiro, que a situação geográfica de Moscovo a coloca no centro do continente euro-asiático e, segundo, que os russos e russófilos têm um papel fundamental a defender os valores autocráticos e deístas que são a única garantia de sobrevivência da Civilização.

(Pensei bem antes de usar o adjectivo “deísta”, porque a teoria ultrapassa o conceito de “cristão”, embora o inclua. Contudo, é uma corrente abertamente anti-semita e anti-muçulmana.)

Nesta ordem de ideias, o perigo principal vem da Europa, porque rejeita qualquer influência da Rússia e porque criou uma cultura liberal e construiu uma sociedade de abundância que são extremamente atraentes. É o diabo sedutor da decadência, que vive no luxo e permite todos os comportamentos.

Os Estados Unidos também são o inimigo, por várias razões; protegem a decadência europeia com o seu poderio militar, e impõem ao mundo o conceito degenerado da democracia, tentando cercar e conter a expansão das boas ideias civilizacionais centralizadas no Kremlin.

A realidade inevitável do Grande Império Euro-Asiático tem sido contrariada, ao longo dos séculos, pela formação de Estados independentes e, depois de 1789, imbuídos duma filosofia igualitária e permissiva que vê o euro-asianismo como uma selvajaria autoritária e regressiva.

Se pensa que estou a exagerar nesta visão apocalíptica, tente ver a televisão russa (o que é muito difícil actualmente, mas aparece irregularmente nas redes sociais) os debates entre os defensores da grande Rússia e da integração da Europa – a Ucrânia é apenas o começo – na ordem social “correcta”. Vivem num mundo paralelo mirabolante.

Se percebe francês, leia o artigo de Laure Mandeville, jornalista especializada no Leste europeu e que foi corresponde do jornal “Le Figaro” em Moscovo, entre 1997 e 2000. Ela relata em pormenor estes argumentos surreais e violentos a que os russos são expostos diariamente. Um exemplo: “O estalinismo não foi um acidente, mas antes um elemento orgânico do nosso destino de potência global”, escreveu o jornalista Pastoukhov na Novaia Gazeta.

Ou seja, esta filosofia ultrapassa as questões de regime. Estaline foi apenas um elo na cadeia de expansão do Império Euro-Asiático, não interessa se usou o comunismo como método. A Rússia estava no bom caminho, afirmando-se como potência de peso mundial e, através do Comintern, espalhando as boas ideias pelos países capitalistas decadentes. O facto de o regime soviético ser anti-capitalista não passava de um capítulo no percurso; na realidade o que interessava era a expansão do império. Em geral, os pensadores euro-asiáticos não são, ou não foram, comunistas. Gumilyov esteve preso décadas e sofreu todas as agruras de quem vivia sob o poder de Estaline e não pensava em conformidade.

Os euro-asiáticos não tiveram uma vida fácil até à chegada ao poder de Vladimir Putin, um oficial do KGB saudoso do poder soviético e desejoso de fazer voltar a Rússia ao seu destino histórico. Deram-lhe a justificação ideológica para exercer o poder e, sobretudo, para iniciar um novo processo de expansão a partir de Moscovo.

Pastoukhov e outro jornalista, Dmitri Bykov, publicaram artigos anunciando o nascimento duma forma de “fascismo neoestalinista” capaz de desencadear uma guerra civil contra os russos “europaisados” que não concordavam com a orientação putinista, ou seja, um novo terror. Na agência de informação oficial russa, a RIA Novosti, um artigo propõe que a Ucrânia seja “desnazificada e des-europeinisada” (a palavra não existe, mas percebe-se). Os dirigentes devem ser “liquidados” e uma grande parte da população, que é constituída por “nazis passivos”, desejosos de ser independentes e europeus, devem ser “castigados” para “expiar os seus pecados contra a Rússia”.

É verdade, estas coisas foram escritas, são ditas e publicadas diariamente.

Quanto à miséria em que vive a generalidade do povo russo, é porque decidiram sacrificar o seu bem-estar em nome do destino histórico do país. A verdade é que as sondagens mostram que a grande maioria dos russos está ao lado de Putin e a sua popularidade aumentou desde que começou a invasão da Ucrânia. Poderia dizer-se que é porque só têm acesso à propaganda oficial; contudo, há outro valor que os anima: o reconhecimento do seu país como uma potência capaz de subjugar os ingratos que ousaram sair da sua esfera de influência.

Pode acreditar-se no destino inevitável do império euro-asiático, ou pode achar-se que estão todos malucos; a verdade, real e evidente, é que a máquina da História está em andamento e não vai por um caminho jovial e bucólico. As teorias imperiais – há outras, como sabemos – são mirabolantes como teorias, mas quando começam a ser praticadas só trazem desgraça e sofrimento, tanto para as vítimas como para os agressores.

O Armagedão não é uma profecia aterradora; é a realidade perante os nossos olhos.

SAPO (PT)

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