Ao contrário da Alemanha, a Rússia nunca foi confrontada com o seu passado como União Soviética. Josef Stalin continua a ser um herói nacional. O grande equívoco do século XX continua à solta.
Por Luís Gouveia Fernandes
Podemos ler tudo sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Para nos protegermos contra a informação que não tem fim, vinda de todos os lados e usando todos os meios, precisamos de escolher os diversos ângulos de análise: história, política, relações internacionais, militar, humanitária.
Uma amiga enviou-me há dias um texto de um psicanalista ucraniano, Roman Kechur, sobre a personalidade de Vladimir Putin, chamando a atenção para o erro que é tentarmos colocar-nos no seu lugar, para prever o que ele pode fazer. Um erro vulgar de análise e também um erro militar.
Mas o que me prendeu nesse artigo foi uma fugaz referência histórica ao fim da Segunda Guerra Mundial e às suas consequências. Diz que a Alemanha foi reformada através do Plano Marshall e de uma desnazificação, que “(…) o mal foi claramente definido como mal. Foi identificado, chamado pelo seu nome e punido (…)”, mas que, após a desintegração da União Soviética em 1991, a Rússia não foi confrontada com nenhuma acusação, nem com o julgamento dos 72 anos de expansão internacional do comunismo e de violência sobre o próprio povo. Josef Stalin continua a ser um herói nacional.
Ou seja, a União Soviética caiu, desfez-se, perdeu a Guerra Fria e a comunidade internacional pouco ou nada fez para que a Rússia pudesse considerar fazer a sua própria reforma, a partir dos erros do passado. Não definindo o mal, nem o chamando pelo seu nome significa, afinal, que, apesar do colapso, o grande equívoco do século XX continua à solta.
Não existiu nenhuma orientação no sentido do reconhecimento, pela nova Rússia, das atrocidades cometidas sobre os seus e sobre os destinos que tentou impor ao resto do mundo, principalmente aos estados mais fracos e aos que não se podiam defender. Se essa culpa não foi assumida e enquanto não for, nada obsta a que continue a vingar publicamente na Rússia, como continua, o culto da antiga União Soviética, a continuação da violência, o desprezo total pela vida humana, pelo primado da lei e pelo respeito dos direitos fundamentais que fazem parte da nossa consciência colectiva. Sem esse reconhecimento e expiação, nada obsta a que tudo continue na mesma. Não se exige aqui o zelo com que os alemães o fizeram em relação ao nazismo, mas algo terá de ser reconhecido pelos russos, formalmente e com reflexo na história do país, para que possam seguir em frente, sem complexos de grandeza e sem medo da sua própria existência.
Para além disso, surgiram as vozes do costume, deslocalizando culpas para o outro lado, justificando Putin com a falta de senso da NATO e da sua expansão, da negligência dos Estados Unidos e outras bizarrias. Para além dos militares reformados que têm defendido estas teses nos nossos media, temos também a opinião de Henry Kissinger sobre a ocupação da Crimeia pela Rússia em 2014: a Ucrânia só tem 20 e tal anos de independência da União Soviética; não pode decidir livremente a sua estratégia; deve fazer como a Finlândia; os Estados Unidos e a Europa deviam ter deixado a Rússia confortável com as suas fronteiras, etc., etc.
Kissinger foi sempre muito claro nas suas opiniões e decisões enquanto exerceu cargos nas presidências de Richard Nixon e Gerald Ford. E assim continuou, quando se transformou num consultor político internacional a partir de 1977. Mas sempre faltou um elemento nas suas equações: as pessoas, a consideração pelas pessoas que vivem nos países alvo das suas opiniões sobre estratégia. Como se o mundo se resumisse a um mapa, ou melhor, a um globo em cima de uma secretária.
Aqui neste país tivemos, pelo menos, dois tristes exemplos do factor Kissinger. Primeiro, quando ignorou em 1975 a tentativa de tomada do poder pelo Partido Comunista Português, considerando que Portugal não era estrategicamente relevante. O que nos poderia ter transformado num satélite da União Soviética até ao seu fim, durante mais de 25 anos. Segundo, quando aceitou tacitamente a ocupação de Timor pela Indonésia. Neste caso, com alguns requintes de cinismo, mandando dizer a Suharto que podia avançar sobre Timor, mas apenas depois de o Air Force One que transportava o presidente Gerald Ford de volta a Washington tivesse saído do espaço aéreo da Indonésia.
Noutro sector, no campo das artes, tivemos uma longa e exaustiva abordagem de temas sobre a Segunda Guerra Mundial, antes e depois, retratando o regime nazi, a guerra, os campos de concentração, o Holocausto, tanto no cinema, Hollywood e Europa, como na literatura de ficção, com escritores de quase todas as nacionalidades, incluindo alemães e austríacos. Esta intensa actividade artística à volta dos temas da guerra, nazismo, fascismo, racismo, foi fundamental para levar o conhecimento às pessoas e para formar gerações. E eficaz também, com a ajuda do cinema, desde “Casablanca” até à “Lista de Schindler” e ao “Pianista”.
Pelo contrário, o período soviético não deu origem a quase nenhumas obras de ficção sobre, por exemplo, a ditadura do partido, os Gulags, as purgas, a fome, as prisões, a tortura, o atraso económico, enfim, a vida das pessoas comuns na União Soviética e o naufrágio da experiência do comunismo, na Europa e no resto do mundo. E é estranho que isso tenha acontecido, mesmo depois da queda do Muro, porque a inspiração que daí emana parece ser inesgotável.
As excepções recentes são poucas. Relembro “House of Meetings”, de Martin Amis, e “A Vida dos Outros”, do realizador alemão Florian Henckel von Donnersmarck. Mesmo não sendo ficção, há também um escritor/jornalista inglês de origem russa, Peter Pomerantsev, que deve ser realçado pelo realismo e conhecimento directo. “Nothing is true and everything is possible”, um dos seus primeiros livros, faz uma descrição brutal, mas ao mesmo tempo construtiva da época actual que se vive na Rússia. Em sentido contrário, no lado oposto à realidade, podemos citar o filme “Reds”, dirigido e interpretado por Warren Beatty, com direito a Oscar em 1982, que tenta transmitir uma visão romântica da revolução de 1917. Talvez seja preciso uma nova “Novela de Xadrez” e um novo Stefan Zweig.
Parece, de facto, que há um afastamento silencioso, uma condescendência dos autores ocidentais de ficção sobre o que se passou em grande parte do século XX, sobre um dos períodos da história em que um regime, uma ideologia, tão mal fez a tanta gente, durante tanto tempo. Nota-se uma certa cerimónia para não mexer numa realidade que esteve oculta e que agora, mesmo depois de todas as revelações, continua a assombrar-nos com estas perguntas: “como foi possível?”; “tanta violência, em nome de quê?”.
Talvez a brutal invasão da Ucrânia pela Rússia venha alterar este estado de oblivião, infelizmente com custos humanos incomensuráveis. Para memória futura.
Para ouvir ao mesmo tempo recomenda-se: “God Only Knows”, Beach Boys
Observador (PT)