Putin acha que pela força está reconduzindo seu país ao lugar que merece no concerto das nações, mas o efeito é exatamente o contrário.
Por Vilma Gryzinski
Em 1992, os preços ao consumidor na Rússia aumentaram 2520%. Como tantos outros russos cujos salários tinham sido devorados pela bomba atômica da inflação, um orgulhoso ex-agente da KGB teve que fazer bico em São Petersburgo, dirigindo um táxi nas horas vagas antes de conseguir uma posição como assessor internacional do prefeito da cidade.
Já deu para perceber que o personagem era Vladimir Putin, o homem que viria a reconstruir a Rússia depois da catástrofe econômica que a derrocada da União Soviética havia provocado.
Numa grande – e irônica – guinada, o próprio Putin está levando seu país de volta para o buraco econômico por causa das sanções sem precedentes que a invasão da Ucrânia desencadeou.
“Deixamos o comunismo há trinta anos e nos acostumamos a ter as mesmas comodidades que existem no Ocidente”, disse um empresário do ramo de restaurantes e turismo ao correspondente do Guardian em Moscou. “Esse progresso todo pode ter acabado. Não somos mais membros da comunidade internacional”.
A reportagem segue um cidadão comum, Alexei Presniakov, que tenta sacar seu dinheiro no banco “antes que não valha coisa nenhuma”. Não consegue. Dólares, nem pensar. Sumiram. O rublo, em derrocada, estava valendo um centavo de dólar, ainda com espaço para cair.
As sanções muito mais agressivas do que era previsível estão doendo no bolso e na moral.
Os russos não podem mais viajar ao exterior, ter dinheiro em moeda forte, assistir o novo Batman, participar da Copa do Mundo ou do Eurovision, o breguíssimo festival de música que hipnotiza os europeus.
Os 630 bilhões de dólares em reservas estrangeiras que o Banco Central russo tinha para funcionar como um colchão amortizador estão embargados. A presidente do Banco Central, Elvira Nabiullina, considerada uma profissional à altura de outros colegas europeus, colocou a taxa de juros em 20% e obrigou os grandes exportadores, inclusive as gigantes petrolíferas Gazprom e Rosneft, a vender 80% de suas reservas em moeda forte, nada menos do que uma pancada no meio da testa.
“É um primeiro sinal de quem vai pagar a conta desse banquete”, ironizou Oleg Deripaska, o rei do alumínio, que está colocando a cabeça para fora da trincheira num momento de extremo perigo. Nos últimos dias, ele pediu o fim do capitalismo de estado e também criticou a invasão da Ucrânia, da mesma forma que outro milionário, Mikhail Fridman, que é ucraniano, e o banqueiro Oleg Tinkov.
Putin pode passar com a motoniveladora sobre os oligarcas, como já fez em outros casos, mas não pode eliminar o fato de que as sanções engolirão até 30% do PIB russo, de 1,7 trilhão, um pouco maior do que o do Brasil.
Alguns golpes que estão deixando a Rússia na posição de pária mundial são iniciativas voluntárias, obviamente movidas pela revolta da opinião pública pela barbárie contra a Ucrânia. Exxon, BP, British Gas e Shell, gigantes energéticas, estão encerrando suas lucrativas participações com a Gazprom russa.
“Estamos travando uma guerra econômica e financeira total contra a Rússia”, disse, com exagero até perigoso, Bruno Le Maire, ministro das Finanças da França.
“Há uma semana, estas coisas seriam inacreditáveis”, definiu outro chanceler, Edgar Rinkevics, da Letônia, um dos países na franja russa que passaram muito tempo alertando para os perigos do expansionismo de Putin e agora vê reações que considerava impossíveis.
Nenhuma reação foi mais impressionante do que a da Alemanha, onde o novo primeiro-ministro, Olaf Scholz, de centro-esquerda, mudou simplesmente tudo. Além de paralisar o Nord Stream 2, o gasoduto que os alemães defendiam com unhas e dentes, aumentou o orçamento das Forças Armadas e está mandando armamentos para a Ucrânia. É quase como se fosse uma outra entidade à frente do governo.
Desemprego, falências, queda no padrão de vida e empresários punidos no exterior e no interior estão entre os efeitos previsíveis das sanções entre os russos.
Putin pode usar tudo isso para aumentar o sentimento de vitimização que insufla entre a população russa, manipulando-a para acreditar que americanos e europeus malvados ameaçam a segurança da pátria ao trazer para sua esfera antigos satélites soviéticos da Europa do Leste.
Pode funcionar por algum tempo, e os russos comuns, longe das metrópoles mais europeizadas, demonstraram ao longo da história uma capacidade de suportar adversidades quase indescritíveis.
Mas não muda o fato de que Putin, como um personagem fatídico de romance russo, é o responsável pela destruição da estabilidade que ele próprio criou.
Revista Veja